quarta-feira, 27 de julho de 2011

Do niilismo à transvaloração de todos os valores: a vida como fiel da balança


Resumo: O seguinte trabalho tem como objetivo primordial caracterizar os três momentos capitais do niilismo e suas relações com a noção de valor, seguindo os passos de Nietzsche em sua “crítica ao niilismo”. Concluiremos com o que se depreende do caminho percorrido pelo filósofo no que concerne ao seu projeto de uma transvaloração de todos os valores.

Do niilismo à transvaloração de todos os valores: a vida como fiel da balança

Por Marcelo Inague Júnior[1]

(...) Vemos que não alcançamos a esfera em que pusemos nossos valores – com isso a outra esfera, em que vivemos, de nenhum modo ainda ganhou em valor: ao contrário, estamos cansados, porque perdemos o estímulo principal. “Foi em vão até agora!”.

Nietzsche, “Sobre o niilismo e o eterno retorno (1881-1888), §8.

O pensamento de Nietzsche se impõe frente a uma tradição que sustenta categorias metafísicas que se constituem como hipostasias. As categorias que supostamente assegurariam a estabilidade do real são apoiadas em noções preconcebidas nas quais estão implícitos jogos de valor. O niilismo aparece, então, como um efeito imediato da tomada de consciência em relação ao vazio dos fundamentos, que possuíam a pretensão de sustentar a estabilidade do mundo fenomênico, do mundo do devir. Nietzsche radicalizará a crença na ausência de valor no interior da própria existência, uma vez que levará às últimas consequências a postura niilista diante da então chamada “realidade”: buscará, entretanto, a sua superação na formulação da noção da vontade de poder, que se entrelaça à própria vida. O caminho que percorreremos consiste na crise das categorias metafísicas como ponto de partida; depois, partiremos para a abordagem da totalidade como constelação relacional e para a descoberta e descrição da dinâmica de forças que se integram num vetor direcionador, a chamada vontade de poder. A partir dessas pequenas considerações poderemos nos aproximar do que Nietzsche chamou de uma transvaloração de todos os valores.

O niilismo enquanto estado psicológico aponta para uma crise dos fundamentos metafísicos dos valores, até então tidos como certos e absolutos. Nietzsche aponta para a situação na qual nos encontramos quando nos deparamos com a insuficiência que as categorias metafísicas apresentam na sua tentativa de serem os pilares que sustentam a realidade, o que culmina na crença da ausência de valor. O homem, assim, encontra-se frente a uma perda de sentido que, pressupostamente – segundo a tradição filosófica –, orientaria, estabilizaria ou regeria o mundo do devir. O que o filósofo empreende, com isso, é levar às últimas consequências um mundo sem a existência de categorias metafísicas: um mundo pensado numa suspensão radical de todas as categorias metafísicas; a morte de Deus.

Nietzsche nos fala de três “etapas”, três momentos nos quais o niilismo entra em cena: o primeiro representa uma crise da categoria “meta”. Nietzsche, aqui, descreve o niilismo como um acontecimento no qual tomamos consciência da “dissipação de força”: diante de “uma agonia do ‘em vão’” o homem não vê mais um sentido que se daria no processo do devir, uma finalidade a qual o devir visaria. Diante desse impasse, da desilusão frente à inexistência de uma meta, o homem compreenderia que “com o devir nada é obtido, nada é alcançado”. Em outras palavras, o devir – em sua incessante transformação – não teria uma finalidade dada de antemão para a qual se direcionaria. O primeiro pilar foi abalado: eis a primeira causa do niilismo.

O segundo momento do niilismo enquanto estado psicológico gira em torno da categoria metafísica da “unidade”. Nietzsche nos diz que esse segundo momento se dá quando o homem tece uma totalidade, uma sistematização: cria uma substância que subjaz o devir, que forneceria a ele uma organização. Entretanto, e ao mesmo tempo, o homem perde a crença num “universal como tal”, numa unidade. Para Nietzsche, a totalidade concebida e sustentada por uma unidade tem como fim a crença em seu próprio valor. É, portanto, uma criação e não algo dado de antemão: diante da descrença num universal, abre-se o espaço de compreensão para o homem descobrir suas ficções.

O terceiro momento, por sua vez, é a sua forma derradeira, como acentua Nietzsche. Considerando os dois momentos anteriores, o do fracasso na tentativa de sustentar uma “meta” e uma “unidade”, Nietzsche nos alerta para um último plano de fuga com relação à suposta incompletude ontológica do devir: considerá-lo como ilusório, afirmando, assim, a existência de um mundo para além do mundo do devir – que considera o devir como um mundo falso, um mundo de erro. O vazio deixado pelo mundo do devir (a perda da meta e da unidade) seria suprido pela crença num mundo verdadeiro, um mundo – segundo Nietzsche – inventado, ficcional. O acontecimento da última e derradeira forma do niilismo se dá, porém, quando o homem enxerga a verdadeira razão da criação de um mundo metafísico: compreende que ela atrela-se a um carecimento psicológico e que, por isso, ele – humano, demasiado humano – foi longe demais. O niilismo, portanto, veta a crença em um mundo verdadeiro, em um mundo metafísico que estaria para além do devir. O devir passa a ser considerado como a única realidade: assim, abre-se o espaço para um sofrimento diante de tal realidade, pois ela é mudança incessante, um fluxo de eventos que se transformam a cada momento em contraposição a uma estabilidade procurada pelo homem. A categoria metafísica de “verdade” não pode mais ser o parâmetro para os eventos do mundo, pois o mundo verdadeiro sofreu, no último golpe do niilismo, sua dissolução: a própria criação de um mundo verdadeiro para além do devir pressupõe a possibilidade de acessá-lo. Nietzsche, porém, nega que tenhamos condições de acessá-lo, pois isso significaria a possibilidade de negar todos os elementos do devir, o que é impossível.

O homem encontra-se, assim, sem rumo, sem solo e sem um além-mundo verdadeiro. A realidade única do devir não pode, porém, ser negada. Desse modo, podemos afirmar que a metafísica sucumbe por não poder calar os elementos do devir. Nietzsche nos alerta para a impossibilidade de as categorias metafísicas ainda determinarem o modo de estruturação do existir antes de qualquer relação, ou seja, a determinação da existência antes da própria existência: o problema não está na verdade em meio à relação, mas sim na instituição de uma verdade anterior e pressuposta, que já carregaria juízos de valor antes mesmo de entrar na dinâmica da própria existência. Essa pressuposição, portanto, diz respeito à incompletude ontológica da realidade em devir (citada acima): segundo ela, o devir não basta por si mesmo – por isso, e necessariamente, ele seria tributário de uma ordem verdadeira. Assim, associá-lo a atributos como “mal” e “falso” tornar-se-ia coerente, mas jamais nos permitiria que nos desvinculássemos de uma atitude hipostasiada, preconceituosa: o devir, dessa forma, foi condenado pelo homem...

Empreendendo uma “filosofia experimental”, Nietzsche retira do mundo as três categorias que o sustentavam. Essa tentativa de pensar o mundo do devir sem determinações metafísicas torna o mundo desprovido de valor, ou pelo menos sem valores predeterminados: valor ou valores através dos quais o homem pautaria todas as suas experiências existenciais. O que o homem agora vê, hipoteticamente, é uma indeterminação originária absoluta, que Nietzsche chamará de caos, que figura “o pior dos mundos possíveis”: aquele mundo que não possui estruturas eternas e imutáveis e que toma o lugar de um mundo ontologicamente insuficiente (tradicionalmente assegurado por categorias metafísicas – onde os jogos de valor se encontravam implícitos: a busca da verdade pressupunha um valor dado à verdade, a crença de que poderíamos alcançá-la e uma desvalorização do devir). Assim, o homem toma consciência de que “a aparição do mundo verdadeiro não provém de uma postura livre e desinteressada em relação ao caminho do conhecimento, mas parte sim de uma condenação do devir como caráter soberano da realidade” [2].

De forma paradoxal, Nietzsche assinala que a causa do niilismo é a crença nas próprias categorias da razão, pois nos fala desse esforço hipotético que é o de pensar na impossibilidade de tais estruturas assegurarem a realidade em fluxo – esse é o seu experimento. O que Nietzsche, assim, nos mostra é que ao invés de nos perguntarmos “o que é a verdade?”, devemos nos perguntar “para que a verdade?”: retirando a crença depositada na própria razão, o homem enxergaria a impossibilidade de fincar suas criações metafísicas em um solo seguro, encarando-as – agora – como perspectivas utilitárias que servem a certos interesses e que, assim, são projetadas no mundo. Nietzsche, em mais uma crítica, exalta que – contudo – essa situação niilista considera o homem como o centro do processo – a medida, o sentido primordial –, pois ainda o considera como aquele que estabelece, como um juiz que delibera e projeta – por vontade livre e própria – o valor no interior de todas as coisas.

A realidade perdeu, a princípio, o seu valor, pois os fundamentos metafísicos que pretendiam assegurá-la passaram a se mostrar como frutos de um carecimento psicológico. O niilismo em sua derradeira forma, porém, é somente um momento intermediário, no qual o homem encontra-se em situação de negação, deparando-se com um vazio de valor: ainda um estágio entre o niilismo e sua superação – Aqui, a vida ainda aparece como desprovida de qualquer sentido, pois ela não pode mais se pautar pelos conceitos de “meta”, “unidade” e “verdade”, assim como o foram compreendidos pela tradição. O homem, dessa maneira, entrega-se à dissolução.

O devir, que passou a ser encarado como única realidade, será, porém, um caminho para a afirmação de um sim perante a vida, mesmo com o esvaziamento de valor causado pela dissolução das categorias até então tidas como absolutas e indubitáveis. Nietzsche buscará, em outras palavras, a possibilidade de reconciliação entre existência plena e devir: em meio à vigência do devir, do aparecimento incessante de novos elementos perante a existência, a vida pode se auto-afirmar e se auto-superar. Entender a dinâmica do devir, portanto, mostra-se como um passo importante para a compreensão desse caráter afirmativo da vida.

A imposição interminável de elementos plurais – o devir – é compreendida como uma transformação incessante, na qual podemos observar uma dinâmica estruturadora que acontece na própria superfície fenomênica: o que Nietzsche vê e descreve é um embate de forças que se impõem e resistem à imposição das demais. O caráter originário de qualquer categoria, assim, é relacional – o problema, até então, foi considerá-las para além de toda e qualquer relação: tal postura – de nos colocarmos para além de toda constelação relacional – nos revelaria uma situação caótica de puras possibilidades dinâmicas de integração e não uma ideia em-si e por-si. Não há, aqui, essencialidade separada da superfície: esse embate originário – o modo como a própria existência se dá – é estruturador e não possui um eu monolítico como determinante. Assim, o próprio eu é um resultado desse embate de forças que nunca se cristalizam, que nunca são previamente dadas e que se incorporam num vetor direcionador, numa força que domina – uma perspectiva estruturadora.

Essa perspectiva estruturadora, que só existe nesse fluxo dinâmico relacional, se caracteriza por sua força de imposição e resistência: em meio à dinâmica relacional e ao surgimento incessante de elementos plurais, a luta entre aqueles que se impõem e resistem jamais tem seu término. Esses embates, que jamais se neutralizam como num movimento dialético, são subjugados por uma única perspectiva que sempre é (de maneira relacional) mais forte do que as outras – essa força, essa perspectiva, é a perspectiva dominante e que, por isso, direciona, a partir de sua determinação própria, os demais elementos que são dados pelo devir. Só pode haver concretização se houver esse embate, no qual uma força em particular desponta como a mais forte e subjuga as demais, submetendo-as ao seu poder de imposição. Chegamos, de maneira resumida, ao que Nietzsche chama de vontade de poder:

Vontade de poder é o nome do modo de realização de todos os acontecimentos da totalidade, uma vez que todos esses acontecimentos surgem através de uma luta entre possibilidades de condução do processo constante de composição das forças em jogo na realidade e que esta luta sempre resulta no aparecimento de uma via imperativa de expansão destas forças sob o domínio interpretativo de uma possibilidade em específico (CASANOVA, 2002, p. 159).

Vida e vontade de poder, nesse sentido, se confundem, pois a própria existência é tributária dessa experiência incessante: descrever a vida – e não apenas conceitualizá-la – é falar dessa dinâmica. A “filosofia experimental” de Nietzsche visa o próprio afrontamento com essa realidade plural, mas no qual a vida deve manter a sua unidade, a sua força direcionadora: uma vida forte, para Nietzsche, é aquela que absorve a pluralidade, sem se diluir, sem se perder – é aquela vida em que se sofre, mas na qual o sofrimento tem o seu lugar de realização. Entretanto, em que sentido a vontade de poder possibilita o empreendimento de uma superação da situação niilista? Talvez tenhamos nos aproximado da resposta a essa pergunta, na medida em que colocamos a vida como o novo fiel da balança – como o novo medidor dos valores. Entretanto, só podemos fazer isso ao encontrar a vontade de poder como fundamento da própria existência, diluindo as ficções metafísicas que pretendiam reger a vida pautando-se por dicotomias, por cisões entre sensível e inteligível, entre aparência e essência, entre fenômeno e númeno, entre não-ser e ser. O existir não consiste numa auto-conservação, mas sim numa incessante apropriação de acontecimentos plurais e dinâmicos: a perspectiva dominante direciona as outras, mas – e ao mesmo tempo – muda ao subjugá-las, pois não há neutralização; uma força, assim, jamais anula outra. Se uma força deixou de ser direcionadora é porque se enfraqueceu e não manteve sua unidade na pluralidade: não podemos, porém, ver nessa “unidade” uma hipostasia, mas sim um elemento que se dá numa relação dinâmica e efetiva de forças ou perspectivas.

O problema da tradição filosófica foi o problema das pressuposições que ela fez, visando calar os elementos plurais da vida, que jamais puderam ser silenciados. O niilismo levado às últimas consequências nos colocou frente a uma apreensão do próprio vazio existencial, mas – da mesma forma –, nos possibilitou a descoberta de um sentido que sempre se deu: a vontade de poder como possibilidade de pensar a partir de uma “nova balança”. Ao mesmo tempo, podemos concluir algo acerca do próprio fundamento dos valores: que a existência de categorias metafísicas – meta, unidade e verdade, por exemplo – se dá de maneira relacional, de modo que não podemos falar de categorias em si mesmas, que estariam para além de toda e qualquer fenomenalidade – essas categorias são verdades inalcançáveis, pois o devir jamais é negado de forma completa. A transvaloração de todos os valores reside nesse novo horizonte: Nietzsche, sendo o primeiro niilista consumado da Europa, nos mostra que, mesmo diante do sentimento de que tudo “foi em vão até agora!”, nós podemos – e temos o direito – de usar uma “nova balança” para medir todos os valores: e esse novo fiel da balança não é nada mais que a própria vida.

BIBLIOGRAFIA:

CASANOVA, Marco Antonio. O ponto máximo de integração ou “o que pode um corpo?”. In: LINS, Daniel e GADELHA, Sylvio – org. – Nietzsche e Deleuze. Que pode o corpo. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará; Fortaleza CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002.

NIETZSCHE, F. W. Sobre o niilismo e o eterno retorno. In: Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

*Aforismo “Crítica do niilismo”, tradução de CASANOVA, Marco Antonio. Sem referência.


[1] Graduando em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atualmente no 8º período.

[2] CASANOVA, Marco Antonio. O ponto máximo de integração ou “o que pode o corpo?”, p. 152.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Descartes


DESCARTES

Toda a questão que relaciona a física com a metafísica diz respeito à necessidade de se fundar a ciência em bases que sejam sólidas, seguras e eternas. A crise do modelo científico – da concepção de ciência – abriu espaço para os questionamentos céticos, fazendo com que a possibilidade de um conhecimento verdadeiro do real mergulhasse em grande dúvida. Assim, o combate ao ceticismo será capital, o que desembocará numa busca de princípios sólidos para a construção de uma base segura para uma nova teoria da ciência.

Desse modo, a física não asseguraria, por si só, a certeza acerca de seus próprios princípios e métodos – de forma que à metafísica restariam essas funções: a de buscar uma ciência certa, a de fazer as distinções necessárias (como a de forma e matéria), a de garantir o método e o fundamento como verdadeiros. A busca do esclarecimento de tais pontos e de suas definições possibilitaria fundar os aspectos que assegurariam um conhecimento correspondente ao real e – por isso – verdadeiro. Dessa forma, explicitando também o sujeito cognoscente e o mundo que o mesmo está apto a conhecer, Descartes busca estabelecer a correspondência que o conhecimento elaborado pela física teria com a realidade.

A obrigatoriedade de tal fundamentação torna-se evidente quando buscamos um princípio que justifique os procedimentos e a base de uma ciência particular. A metafísica teria o papel de validar as hipóteses e de discutir, em Descartes, questões que transcendem a própria ciência a ser justificada.

Em sua fundamentação metafísica da ciência, Descartes chegará a Deus como o alicerce que permite a correspondência entre pensamento e realidade exterior ao pensamento, não permitindo que a situação solipsista permaneça como a predominante. Seria preciso demonstrar como as ideias que obedecem ao método e que formulamos acerca da realidade correspondem, de fato, à realidade.

Não dar um princípio claro e distinto para a física seria deixá-la fragilizada diante da dúvida, uma vez que tal ciência pretende conhecer e descrever a primeira das realidades que desaparece e que mostra seu caráter de mudança incessante – que é a realidade física, o devir. Dar uma base segura para a ciência, fundamentalmente, é assegurar a validade de seu método e os princípios que o fundam, explicitando a sua verdade.

Galileu


GALILEU

Galileu, em sua discussão acerca da validade do conhecimento científico, coloca-se contra o argumento de autoridade no que diz respeito ao modo como conhecemos e entendemos a natureza. Com essa postura, Galileu acrescenta ao real certas características que, supostamente, permitiriam ao sujeito cognoscente o acesso a uma realidade oculta não dada de antemão, principalmente ao vulgo.

É importante ressaltar que, por mais que o real possua as características a seguir enumeradas, o valor epistêmico depende, também, de uma postura fundamental daquele que conhece – constitui, assim, uma via de mão dupla na qual o sujeito deve obedecer a certas regras para conhecer verdadeiramente.

O real, a natureza a ser conhecida – porém, nunca esgotada –, necessita possuir certas características que possibilitem uma prática científica segura e rigorosa. Frente à evidência sensível do devir, do aparecimento e desaparecimento dos corpos que a física e a matemática pretendem descrever, Galileu postulará como características intrínsecas ao real, estas expressas pelas leis formuladas no interior de uma lógica matemática e científica.

A natureza, o real, é um livro escrito em caracteres matemáticos: a matemática, por sua vez, expressa as características que permitem que a realidade em fluxo seja conhecida por seu valor de eternidade. Nenhuma lei poderia ser formulada ou conhecida se abríssemos mão dessas características, pois são elas, também, que garantem a reprodutibilidade do conhecimento científico – caráter essencial para todo conhecimento que se pretenda compreensível por uma comunidade científica.

Diante do real, os sentidos humanos devem ser instruídos para que o conhecimento racional ganhe seu devido espaço: a inteligibilidade do real, para além das teorias que construímos acerca do mesmo, é uma realidade afirmada por Galileu e alcançada por experiências sensíveis e demonstrações necessárias. Seu fim – e aqui não podemos adotar o sentido de finalismo, como em Aristóteles – é a quantificação, pois a própria natureza é quantificável na medida em que possui uma estabilidade, uma constância em sua base. A essencialidade da natureza, segundo Galileu, é matemática. Tal essencialismo, assim, nos permite afirmar a possibilidade de um conhecimento regular, de uma descrição do real e da descoberta de suas leis.

Outra característica é o caráter aberto do “livro da natureza”: entretanto, requer-se o conhecimento e a instrumentalização matemática e científica para que seus caracteres possam ser compreendidos. Salientemos, pois, que ele é aberto para qualquer sujeito que queira conhecer e que se instrumentalize, uma vez que as demonstrações, que guiam os homens nesse conhecimento, são universais ou buscam concretizar uma universalidade.

Assim, o real jamais pode ser fechado como um livro qualquer, tendo o direito de ser publicizado, mesmo que se defronte com a autoridade moral ou religiosa. Entretanto, além do real ser inexorável, imutável, eterno, o sujeito da ciência tem que possuir certas características para assumir o projeto científico.

FÉDON: A IMORTALIDADE DA ALMA


FÉDON: A IMORTALIDADE DA ALMA

O diálogo Fédon, de Platão, é fundamental para a reflexão filosófica e metafísica do Ocidente. Nele, Sócrates – condenado pela democracia ateniense e prestes a beber a cicuta – nos demonstra a imortalidade da alma. Tal demonstração, por sua vez, é feita diante de alguns de seus discípulos que viam na eminente morte de Sócrates um motivo para grande desespero, pois perderiam seu “grande pai” nos caminhos do pensamento. Entretanto, Sócrates – nas palavras de Fédon em seu relato para Equécrates – surpreendeu: respondeu às questões e aos temores de seus discípulos com humor, bondade e ar interessado, selando – de certa forma – a “imagem” clássica do que significa, verdadeiramente, ser filósofo.

O ponto que o presente trabalho busca desenvolver é a resposta dada por Sócrates a Símias e a Cebes, uma vez que ambos aceitaram a teoria da reminiscência – não aceitando, porém, a teoria da imortalidade da alma – garantia dada por Sócrates como verdade após a morte do corpo. Assim, a teoria da imortalidade da alma está assentada em quatro pilares: a teoria dos contrários, a reminiscência, a simplicidade e a incompatibilidade dos opostos. O que faremos, é uma breve recapitulação da teoria da reminiscência e dos outros argumentos para, então, entrarmos nesse segundo momento no qual Sócrates argumenta a favor de sua teoria, fazendo com que Símias e Cebes enxerguem sua tese não com os olhos do corpo, mas sim com os olhos da alma:

Sócrates – E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um entrave se na investigação pedimos auxílio? Quero dizer com isso, mais ou menos o seguinte: acaso alguma verdade é transmitida aos homens por intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo menos em relação a estas coisas não se passem como os poetas não se cansam de no-lo repetir incessantemente, e que não vemos nem ouvimos com clareza? E se dentre as sensações corporais estas não possuem exatidão e são incertas, segue-se que não podemos esperar coisa melhor das outras que, segundo penso, são inferiores àquelas. Não é também este o teu modo de ver? (PLATÃO, 1972, p. 72).

A sucessão dos contrários representa um momento crucial, e inicial, para o desenvolvimento de toda a argumentação socrático-platônica. Notamos, aqui, a herança do heraclitismo, que admite que – na realidade do devir – as coisas surgem de seus contrários. Essa seria a lei geral da natureza que possibilitaria o movimento e a dinâmica da realidade: da mesma forma que prazer e dor andam juntos – se geram um do outro – o pequeno e o grande se mantêm em relação, de modo que pensamos nos objetos grandes em contraste com os objetos pequenos e vice-versa. O que Sócrates conclui, diante da realidade que se transforma incessantemente, é que há uma sucessão infinita de contrários, que impedem a imobilidade dessa realidade: o decomposto torna-se composto, e o composto torna-se decomposto, assim como da vida sucede-se a morte e da morte sucede-se a vida. A questão, porém, é essa, segundo Sócrates (Platão, 1972, p. 79): “se dos mortos nascem os vivos, que podemos admitir senão que nossas almas devem mesmo estar lá [no Hades]?”. Mais adiante, Sócrates – ao insistir na geração dos contrários – admite que sem essa eterna compensação recíproca das gerações faltaria algo à natureza, a constância pela qual ela seria tributária:

- Cabe-te agora a vez de dizer outro tanto a respeito da vida e da morte. Não dirás, de início, que “viver” tem por contrário “estar morto”?

-É o que eu diria.

-E, em seguida, que esses estados se engendram mutuamente?

-Diria.

-Que é, por conseguinte, o que provém do que está vivo?

-O que está morto.

-E do que está morto, que é que provém?

-Impossível – disse Cebes – não admitir que é o que está vivo.

-É, pois, de coisas mortas que provêm, Cebes, as que têm vida, e, com elas, os seres vivos?

-É claro.

-Quer dizer, então, que nossas almas existem no Hades.

-Parece mui verossímil.

(Ibid., p.80)

E:

-Das duas gerações, enfim, que aqui temos, não há pelo menos uma que não nos deixe dúvida sobre sua realidade? Por que o termo “morrer” penso, está fora de dúvida! Não está?

-Sim, absolutamente certo.

-Que faremos, então? Não o compensaremos pela geração contrária? Porque, se não fosse assim, a Natureza seria coxa! Ou, pelo contrário, será preciso supor uma geração contrária ao “morrer”?

-Isso é, segundo penso, absolutamente necessário.

-E qual é essa geração?

-É “reviver”.

-Por conseguinte – continuou Sócrates – uma vez que “reviver” existe, não se poderá dizer que o que constitui a geração dos mortos para os vivos é precisamente “reviver”?

-Evidentemente.

(Ibid., pp 80-81)

Dessa maneira, Sócrates admite que as almas, dos mortos, existem em algum lugar: invisíveis aos olhos do corpo, mas visíveis aos olhos da alma. Daí, partindo dessa existência invisível, elas poderiam retornar para o nosso mundo no momento da geração da vida. Abre-se aqui o caminho, também, para a discussão da teoria da reminiscência, uma vez que ela se articula com a existência das almas antes das mesmas incorporarem-se e constituírem “novas” vidas. Resgatando teses defendidas em outros diálogos, como o Fédro, Sócrates relembrará e desenvolverá a questão que gira em torno da reminiscência: a de que “todo conhecimento é um reconhecimento”.

Partindo da ideia de que corpo e alma são coisas que se opõem, mas que coexistem no homem, Sócrates partirá para a análise de como podemos estabelecer relações entre as coisas sensíveis, mesmo que elas – pelo fato de serem sensíveis – não nos possam oferecer nenhuma verdade em si mesmas (sendo apenas cópias de algo verdadeiro e imutável). A análise de tal problema partirá das coisas sensíveis para a apreensão de uma realidade que é mais verdadeira, a saber, o mundo das ideias (Topos Uranos). Longe, porém, de se utilizar de uma imagem como a da Alegoria da Caverna, Platão nos deterá no modo como apreendemos as semelhanças e as diferenças entre os objetos sensíveis, no qual trazemos a visão obscura da essência (que será relembrada no contato com o objeto): ela, aqui, é o alicerce que nos permite fazer essas apreensões.

A apreensão, por exemplo, de objetos de tamanhos diferentes – imagem utilizada pela personagem Sócrates – nos levanta a seguinte questão: se, acerca de objetos sensíveis, dizemos que um deles é maior em relação a um e menor em relação a outro, poderíamos afirmar que esse objeto possui alguma das duas qualidades em si mesmo? De tal questão, Sócrates afirma a impossibilidade de formar as ideias, de Grande e Pequeno, a partir da experiência sensível de objetos que se apresentam como grandes ou pequenos apenas em relação: seria preciso que nossa alma já tivesse contemplado a essência do Grande e do Pequeno. Assim, é estabelecida uma distinção entre a ideia e as coisas que lhe são semelhantes – a primeira sendo sempre igual a si mesma e imóvel só pode ser apreendida pela alma e as segundas se vinculam à primeira pelo que chamaremos de participação.

Os objetos sensíveis que participam das ideias nunca as esgotam: a alma compreende que tais objetos desejam esgotá-las, mas nunca completam tal projeto. Sendo sempre iguais a si mesmas, as ideias são simples, imóveis e só podem ser apreendidas pelo intelecto, permanecendo sempre na identidade: o Grande em si, o Pequeno em si, o Belo em si, etc – não as percebemos através de nossos sentidos, mas eles nos despertam para o reconhecimento de uma contemplação anterior à própria vida:

-Assim, pois, antes de começar a ver, a ouvir, a sentir de qualquer modo que seja, é preciso que tenhamos adquirido o conhecimento do Igual em si, para que nos seja possível comparar com essa realidade as coisas iguais que as sensações nos mostram, percebendo que há em todas elas o desejo de serem tal qual é essa realidade, e que no entanto lhe são inferiores!

-Necessária consequência, Sócrates, do que já dissemos.

(Ibid., pp. 84-85)

E mais adiante:

-(...) é uma necessidade lógica que tenhamos nascido com esse saber eterno, conservando-o sempre no curso de nossa vida.

(Ibid., p.85)

A essa simplicidade e essencialidade – que são invisíveis aos olhos da carne, mas apreensíveis aos olhos do intelecto (mesmo que de maneira obscura – uma vez que partimos de objetos sensíveis que nos despertam para uma realidade superior) – Sócrates identificará a alma. E ela, por sua vez, se identificaria com a ideia, uma vez que ambas são indestrutíveis. Ou mais: uma vez que é por meio da alma que conhecemos a ideia, poderíamos deduzir que elas compartilham uma mesma natureza ou pelo menos algo em comum.

Chegado nesse ponto – e diante das demonstrações de Sócrates –, Símias e Cebes se encontram convencidos acerca da teoria da reminiscência. Os discípulos de Sócrates, porém, não se convenceram da afirmação de que a alma, mesmo após a decomposição do corpo, se mantenha una, indestrutível e que não se desgaste ao longo de seus renascimentos. As objeções de Símias e Cebes, por isso, visam atacar a última das grandes teorias defendidas por Sócrates: Símias exalta a impossibilidade de a alma continuar existindo após a morte, uma vez que – comparativamente – a harmonia seja produzida pela lira e não o contrário. Cebes, por sua vez, levanta a questão de que, mesmo que a alma preexista ao corpo e que se dirija ao Hades após a morte, isso não implica que a alma não sofra uma espécie de desgaste e que, ao fim – em seu desgaste máximo –, deixe de existir.

Sócrates, jovial e alegre com as últimas e mais ferozes objeções, responderá aos questionamentos de seus discípulos, colocando em jogo uma das maiores discussões da metafísica e da filosofia, uma vez que demonstrará – com a força da razão e dos argumentos – a imortalidade da alma. Para Símias – que apresentou, das duas, a mais fraca das objeções – Sócrates fará uso do seguinte argumento: da lira segue-se o som, e deste constitui-se a harmonia: isso é algo certo, mas não podemos jamais deduzir que com a alma se passe a mesma coisa. Se a harmonia e o som seguem-se da lira; e se a lira sofre algum dano em suas cordas – perturbando o som e a harmonia – não podemos se utilizar desse fato e compará-lo ao estatuto da alma:

-Pergunto se, quando os elementos estão de acordo, se a harmonia também não existe mais ou menos? E quando mais fracos e menos extensos, se a harmonia também não é mais fraca e menos extensa?

-Claro!

-E com a alma se passará o mesmo? É o fato de uma alma ter, no menor de seus elementos, em grau mais elevado do que outra, mais extensão e mais grandeza ou menos extensão e mais fraqueza, que precisamente constitui o que ela é, a saber, uma alma?

(Ibid., p.105)

Assim, Sócrates – demarcando a essencialidade da alma –, combate o argumento de Símias, uma vez que nossa parte divina constitui-se numa ordem diferente, possuindo uma realidade que lhe é própria: a alma não segue, necessariamente, as paixões do corpo – muitas vezes, e na maioria delas, ela as contraria, assim como afirmará o filósofo que está prestes a beber a cicuta. A alma não pode ser encarada como “a harmonia do corpo”, na medida em que ela não nasce dele, mas lhe é anterior – como foi demonstrado na teoria da reminiscência.

Em sua resposta a Cebes, Sócrates partirá para a análise das ideias – uma vez que elas se identificam com a natureza da alma. Ao nos lembrar que o Belo em si, o Grande em si e o Bom em si existem, Sócrates visa demonstrar que a alma é imortal: o que o fará mencionar, consequentemente, a teoria da participação. Os objetos que participam das ideias obedecem à dinâmica da corrupção e geração, da sucessão dos contrários, mas a ideia – que é idêntica a si mesma – não se submete a uma geração a partir de seu contrário.

Sócrates se utiliza do seguinte exemplo: se um indivíduo é grande em relação a um e pequeno em relação a outro é porque, em relação, se sobrepõe à pequenez de um e se subjuga à grandeza do outro, não existindo simultaneamente no mesmo indivíduo na mesma relação. Ou seja, as qualidades se sucedem, mas o mesmo não acontece com “os próprios contrários que estão dentro de uma coisa e lhe dão nome”:

-Digo isto, porque desejo que tenhas a mesma opinião que eu. Pois, quanto a mim, parece-me claro isto: a grandeza em si jamais consente em ser simultaneamente grande e pequena. Da mesma forma procede a grandeza, nunca admitindo a pequenez nem desejando ser ultrapassada, mas optando por uma destas alternativas: ou se retira e foge quando seu contrário, a pequenez, se aproxima – ou, então, cessa de existir quando aquela avança. O que admite e aceita a pequenez jamais deseja ser outra coisa senão o que é. Eu, por exemplo, havendo admitido e aceitado a pequenez, continuo a ser o que sou, pequeno; mas a grandeza em si não suportou ser grande a ao mesmo tempo pequena; e, da mesma forma, a nossa pequenez jamais deseja tornar-se ou ser grande; aliás, nenhuma outra coisa deseja, enquanto existe, tornar-se ou ser o seu contrário, mas se retira ou se destroi quando isso acontece.

(Ibid., pp.115-116)

Da mesma forma, acontece com o fogo: não se confundindo com o calor, mas participando da ideia desse último, ele jamais aceita a ideia de frio. Entretanto, quando o frio se aproxima, o fogo (Ibid., p.117) “retirar-se-á ou deixará de existir, mas nunca se resolverá a aceitar o frio e continuar ao mesmo tempo a ser o que era, fogo e frio”. Com a ideia de três também se sucede a mesma coisa: além de conter a sua própria ideia, o número três contém a ideia de ímpar – assim, jamais poderá se aproximar da ideia de par. Podemos, também – inversamente – dizer que a ideia de par jamais se aproximará do número três, uma vez que o três participa da ideia de ímpar. Completa Sócrates:

-(...) não é somente o contrário que não recebe em si o seu contrário, mas o mesmo acontece também a coisas que, sem serem mutuamente contrárias umas às outras, possuem sempre em si os contrários, e as quais verossimilmente não receberão jamais uma qualidade que seja o contrário da que nelas existe (...).

(Ibid., p. 118)

E:

-(...) que é que entrando num corpo o faz quente? Não te darei aquela resposta certa, mas simples, que é o calor, mas responder-te-ei com uma mais hábil, dizendo que é o fogo. Perguntas: que é que, entrando num corpo, o torna doente? Não direi que é a doença, mas a febre. Da mesma forma, não irei declarar que um número se torna ímpar devido à imparidade, mas sim devido à unidade, e assim por diante. Examina, entretanto, se compreendeste bem o que quero dizer!

-Compreendi suficientemente – Respondeu Cebes.

-Então responde-me, se puderes: qual é a coisa que, entrando num corpo, o torna vivo?

-A alma.

-Mas é sempre assim?

-Como não!

-Portanto a alma, empolgando uma coisa, sempre traz vida para essa coisa?

-Sempre traz vida!

-Existe um contrário da vida, ou não?

-Existe.

-Qual é?

-A morte.

-Não é verdade que a alma jamais aceitará o contrário do que ela traz consigo?

-Decididamente!

-(...) Bem, e ao que não admite a morte como chamaremos?

-Imortal.

-A alma não admite a morte, pois não é?

-É.

-Logo, a alma é imortal?

-É imortal!

-E, então, afirmaremos ou não que isso está provado? Que achas?

(Ibid., pp. 118-119)

Pelo fato da alma participar da essência da imortalidade – “o imortal é indestrutível” – ela não pode aceitar, de forma alguma, o seu próprio perecer, a sua destruição. Através da incompatibilidade dos opostos, Sócrates argumentará que – com o sobrevir da morte – a alma foge rapidamente do corpo morto, pois não admite misturar-se com seu contrário: o perecimento do corpo não nos permite afirmar que a vida, enquanto essência se torne o seu contrário.

Símias, Cebes e os demais discípulos de Sócrates, convencidos de tal argumentação, não conseguem – porém – conter as lágrimas diante do fato de que seu grande mestre, minutos após beber a cicuta, viria a morrer. O diálogo Fédon, representa um momento decisivo e um dos pilares nos quais a tradição de pensamento ocidental irá se apoiar. Assim morre Sócrates, julgado por corromper a juventude de sua época e por filosofar em praça pública. Entretanto, morrendo pela busca da verdade e pelo ideal filosófico, entrou para a história do pensamento – conquistando a imortalidade em nossa história – como um dos maiores filósofos de todos os tempos.

Bibliografia:

Platão. Fédon. In: Diálogos/ Platão; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa- 5. Ed.- São Paulo: Nova Cultural, 1991. [Coleção Os Pensadores]

A MATÉRIA, A FORMA E A SUBSTÂNCIA


A MATÉRIA, A FORMA E A SUBSTÂNCIA

Aristóteles – discípulo da Academia por volta de 20 anos e uma das mentes mais famosas da Antiguidade – se contrapõe ao sistema platônico de forma radical, produzindo uma obra que influenciou várias áreas do saber. No breve trabalho buscaremos apresentar, de forma geral, a crítica que Aristóteles faz à divisão platônica dos dois mundos (o sensível e o inteligível), bem como trazer a concepção aristotélica da constituição da realidade, apontando – de forma breve – as insuficiências radicais que encontramos na base da filosofia dualista de Platão.

O pensamento de Platão constituiu-se, em seu cerne, numa tentativa de superar o impasse instituído entre eleatismo e heraclitismo: a teoria das formas, também chamada de teoria das ideias, é um dos principais legados de Platão para a história da humanidade. O que importa, dentre muitos outros fatores, é ter a consciência de que Platão surgiu no meio de muitos problemas filosóficos deixados pela filosofia pré-socrática. Platão se esforça, com todo o seu gênio filosófico, por resolver o dilema deixado pelas ideias radicalmente contrárias de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia. A teoria das formas de Platão, assim, tenta reconciliar as teses do mobilismo (Heráclito) e do imobilismo (Parmênides) universais.

É de conhecimento, acerca da obra de Platão, que a solução para conciliar Ser e Devir foi a da cisão da realidade em dois mundos: o mundo das sombras, que é visível e instável, e o mundo das ideias, que constituem as realidades sólidas e últimas das quais a primeiro mundo é tributário. Assim, os objetos do mundo sensível não poderiam se igualar às ideias, uma vez que, em relação a elas, só manteriam um vínculo – é o que Platão chamará de participação. É esse dinamismo que garante que os objetos do mundo sensível participem da essência como meras sombras e imperfeições que aspirariam à realização do Bem, mas que jamais poderiam alcançá-lo, em meio à realidade do devir – em meio à realidade sensível.

O vínculo estabelecido por Platão entre as duas realidades era sustentado pela teoria da participação. O problema apontado por Aristóteles diz respeito a um raciocínio de tal índole: a natureza do mundo sensível e a do mundo inteligível se excluem, ou seja, são antagônicas – dizem respeito a coisas diferentes. Uma vez que ambos os mundos se excluem, a pressuposição de que há um vínculo que os liga (o vínculo participativo) faz com que os defensores do dualismo platônico caiam num paradoxo, uma vez que esse vínculo deve ser interno ou externo: se esse vínculo se apresentar como interno, afirmamos que há uma natureza comum ao mundo sensível e ao mundo inteligível (o que vai contra as teses tradicionais do dualismo); se esse vínculo se apresentar como externo, teremos que buscar um critério que garanta a ideia de participação – entretanto, esse critério exigirá outro critério e, assim, tenderemos ao infinito.

Aristóteles, assim, busca superar essa visão dualista da realidade, acabando com a transcendência do mundo divino das ideias – das essências imutáveis e indestrutíveis – e colocando as ideias no próprio mundo sensível, que é a única realidade de fato. Rompendo com o dualismo “sensível x inteligível”, Aristóteles trabalhará com o conceito de substância individual, composto por aspectos concretos, ou seja, tudo que constitui os seres encontram-se nos próprios seres e não o transcendem: o que temos é o fruto de uma mistura desses muitos aspectos, atrás da qual subjaz uma essência que jamais é “descolada” da empiria.

A questão fundamental é a distinção que não foi feita, segundo Aristóteles, pelos seus antecessores, a saber: a distinção entre matéria (hyle) e forma (eidos), duas substâncias que se encontram ativas na constituição dos indivíduos reais (as substâncias individualizadas). À matéria delegaremos o princípio de individuação e quanto à forma a maneira como a matéria se organiza. A tese defendida por Aristóteles se contrapõe ao dualismo platônico, pois, aqui, é defendida uma imanência, ao invés de uma transcendência que sustentaria o nosso mundo. Assim, se há uma ideia que englobe vários seres, não podemos afirmar a sua existência independentemente dos objetos em devir e do sujeito que conhece, mas sim que ela existe na mente humana – fruto da indução, ou seja, de uma operação mental: entretanto, não podemos desvincular a ideia de seus próprios objetos. A ideia, através da atividade intelectual, é retirada dos objetos e elevada ao estatuto da universalidade, através de um mecanismo que abstrai as semelhanças: prova de que a essência não se encontrava previamente dada aos objetos. A ideia é estrutura do próprio objeto e não se encontra fora dele.

Matéria e forma são indissociáveis – uma não existe sem a outra – e ambas, sendo substâncias, agem na constituição das substâncias individuais. Essas, por sua vez, possuem seu aspecto essencial (aquele que nos permite classificar os diferentes seres em uma mesma espécie), mas podem receber atributos diferentes. “O ser se diz em vários sentidos”: ele pode ser referido como substância (Ser) ou acidente (modo de ser). Sendo que a substância designa aquilo que ele é, enquanto o acidente aquilo que ele pode ser.

De forma abrangente, podemos identificar nessa crítica de Aristóteles a Platão um confronto entre dois modelos de pesquisa científica que repercutiram na especulação e rigor filosóficos: a matemática e a biologia. Platão, logicamente, está do lado do pensamento matemático, uma vez que compreende a realidade sensível como a sombra de um mundo que conteria em si as verdades eternas: as ideias de triângulo, de círculo, de homem, de justiça, de coragem e de Bem (e etc.) constituiriam esse mundo transcendente. Já Aristóteles – de certa forma jogando o dualismo para dentro do indivíduo, mas para um indivíduo que existe somente em um mundo –, enxerga a realidade como única, encarando-a como um grande sistema ou um grande organismo, tal como aos olhos de um biólogo.

ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. 3ª versão. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 8ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004.

Reflexões (???) de um futuro educador...

Reflexões (???) de um futuro educador...

A filosofia, longe de ser somente encarada como uma disciplina a ser ministrada no nível médio (ou até universitário), nos traz inúmeros paradigmas. Devido a seu caráter amplo, pela sua relação mesma com as várias áreas do saber, encontramos dificuldades, inclusive, na tentativa de definição mais elementar para a pergunta “o que é filosofia?”.

A cobrança de questões de filosofia no vestibular e a volta da filosofia como disciplina obrigatória no ensino médio suscitaram questões antes deixadas em um segundo plano. A pergunta tão clássica na história do pensamento filosófico entra, com todo o direito, no cenário educacional brasileiro: “para que, então, a filosofia na sala de aula?”.

Um futuro docente deve ficar atento as possíveis problematizações:

Habitamos uma tradição pedagógica fundada na lógica da transmissão. Todavia, não está claro o que se transmite no ensino de filosofia. É evidente que não se pode reduzir a filosofia à transmissão de conteúdos filosóficos. Contudo, a ausência de qualquer forma de transmissão é também problemática. Sócrates parece sugerir que, em filosofia, nada há para transmitir a não ser um gesto que, em si mesmo, não pode ser transmitido.

(KOHAN, 2009, p. 75)

A filosofia encontra-se, de certa forma, entre dois caminhos: o formativo e o informativo, entre uma tentativa constante de desenvolvimento de um pensamento crítico e um volume imenso de conteúdo a ser ministrado e decifrado. É inegável o grande potencial que a filosofia conserva – em seu cerne – na formação de um cidadão mais crítico e mais aberto ao questionamento autônomo, mas, enquanto disciplina obrigatória, a filosofia também deverá seguir um currículo específico, de acordo com as diretrizes educacionais e com a as recomendações de cada instituição em particular.

Para um futuro docente de filosofia o aprender e o ensinar nunca devem ser cristalizados (como atividades prontas e acabadas), mas devem ser pontos de tensão constantes – uma troca que permite desenvolver novas possibilidades e relações de poder dentro da sala de aula.

Afirma-se que a inclusão da filosofia no ensino médio (assim como a da sociologia) veio ao socorro de um ideal de educação que privilegia a formação humana – uma abordagem humanista da educação –, visando dar ao aluno os meios básicos para o exercício pleno da cidadania, que são – antes do conhecimento das próprias leis que regem o nosso país – o da conquista de uma autoconsciência, o do abandono de preconceitos e o da busca de uma sociedade mais justa e igualitária. O próprio surgimento da filosofia será um exemplo a ser dado aos alunos – pois discursa sobre uma tentativa de uma compreensão verdadeira acerca da natureza e, depois, sobre a busca sincera e democrática da verdade.

O que podemos concluir perante as exigências curriculares (“concluir” – entre aspas –, pois em filosofia não privilegiamos as conclusões, mas sim as perguntas) é que elas estabelecem mais um paradigma – senão um obstáculo a ser superado – que exigirá do profissional o desenvolvimento de novas estratégias de ensino. Numa visão um tanto particular, compreendemos que o programa proposto é imenso (para a pouca carga horário da disciplina nas grades curriculares) e esperamos, assim, que problemas (e, consequentemente, soluções) nasçam quando nos encontrarmos na prática efetiva do ensino.

A forma como avaliaremos nossos alunos também será uma questão colocada em pauta, pois – se levarmos em consideração a fala do professor Kohan – estaremos tentando avaliar algo que não é, literalmente, um conteúdo a ser passado pelo professor e assimilado pelo aluno.

Dentre os ideais que sustentamos, está a crença de que a filosofia pode sim contribuir para a formação de um indivíduo que se paute, assim como a imagem sustentada por Sócrates, por uma busca pelo saber – visando uma transformação, tanto própria quanto a de seu contexto histórico-cultural. Acima de tudo, desejamos – assim como Bachelard, em sua obra poética – despertar no aluno um desejo de leitura. Essa leitura, porém, jamais pode ser uma leitura rápida. Aqui, Bachelard nos fala de poemas; entretanto, poderíamos dizer o mesmo da filosofia?

Mas não basta receber, é preciso acolher. É preciso, dizem em uníssono o pedagogo e o dieteticista, “assimilar”. Para isso, somos aconselhados a não ler com demasiada rapidez e a cuidar para não engolir trechos excessivamente grandes. Dividam, dizem-nos cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem necessárias para melhor resolvê-las. Sim, mastiguem bem, bebam em pequenos goles, saboreiem verso por verso os poemas. Todos os preceitos são belos e bons. Mas um princípio os comanda. Antes de mais nada, é necessário um bom desejo de comer, de beber e de ler. É preciso desejar ler muito, ler mais, ler sempre.

(BACHELARD, 2006, p. 26)

Referências bibliográficas:

BACHELARD, G. A poética do devaneio. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KOHAN, W. O. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar. Tradução: Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.