terça-feira, 19 de julho de 2011

A MATÉRIA, A FORMA E A SUBSTÂNCIA


A MATÉRIA, A FORMA E A SUBSTÂNCIA

Aristóteles – discípulo da Academia por volta de 20 anos e uma das mentes mais famosas da Antiguidade – se contrapõe ao sistema platônico de forma radical, produzindo uma obra que influenciou várias áreas do saber. No breve trabalho buscaremos apresentar, de forma geral, a crítica que Aristóteles faz à divisão platônica dos dois mundos (o sensível e o inteligível), bem como trazer a concepção aristotélica da constituição da realidade, apontando – de forma breve – as insuficiências radicais que encontramos na base da filosofia dualista de Platão.

O pensamento de Platão constituiu-se, em seu cerne, numa tentativa de superar o impasse instituído entre eleatismo e heraclitismo: a teoria das formas, também chamada de teoria das ideias, é um dos principais legados de Platão para a história da humanidade. O que importa, dentre muitos outros fatores, é ter a consciência de que Platão surgiu no meio de muitos problemas filosóficos deixados pela filosofia pré-socrática. Platão se esforça, com todo o seu gênio filosófico, por resolver o dilema deixado pelas ideias radicalmente contrárias de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia. A teoria das formas de Platão, assim, tenta reconciliar as teses do mobilismo (Heráclito) e do imobilismo (Parmênides) universais.

É de conhecimento, acerca da obra de Platão, que a solução para conciliar Ser e Devir foi a da cisão da realidade em dois mundos: o mundo das sombras, que é visível e instável, e o mundo das ideias, que constituem as realidades sólidas e últimas das quais a primeiro mundo é tributário. Assim, os objetos do mundo sensível não poderiam se igualar às ideias, uma vez que, em relação a elas, só manteriam um vínculo – é o que Platão chamará de participação. É esse dinamismo que garante que os objetos do mundo sensível participem da essência como meras sombras e imperfeições que aspirariam à realização do Bem, mas que jamais poderiam alcançá-lo, em meio à realidade do devir – em meio à realidade sensível.

O vínculo estabelecido por Platão entre as duas realidades era sustentado pela teoria da participação. O problema apontado por Aristóteles diz respeito a um raciocínio de tal índole: a natureza do mundo sensível e a do mundo inteligível se excluem, ou seja, são antagônicas – dizem respeito a coisas diferentes. Uma vez que ambos os mundos se excluem, a pressuposição de que há um vínculo que os liga (o vínculo participativo) faz com que os defensores do dualismo platônico caiam num paradoxo, uma vez que esse vínculo deve ser interno ou externo: se esse vínculo se apresentar como interno, afirmamos que há uma natureza comum ao mundo sensível e ao mundo inteligível (o que vai contra as teses tradicionais do dualismo); se esse vínculo se apresentar como externo, teremos que buscar um critério que garanta a ideia de participação – entretanto, esse critério exigirá outro critério e, assim, tenderemos ao infinito.

Aristóteles, assim, busca superar essa visão dualista da realidade, acabando com a transcendência do mundo divino das ideias – das essências imutáveis e indestrutíveis – e colocando as ideias no próprio mundo sensível, que é a única realidade de fato. Rompendo com o dualismo “sensível x inteligível”, Aristóteles trabalhará com o conceito de substância individual, composto por aspectos concretos, ou seja, tudo que constitui os seres encontram-se nos próprios seres e não o transcendem: o que temos é o fruto de uma mistura desses muitos aspectos, atrás da qual subjaz uma essência que jamais é “descolada” da empiria.

A questão fundamental é a distinção que não foi feita, segundo Aristóteles, pelos seus antecessores, a saber: a distinção entre matéria (hyle) e forma (eidos), duas substâncias que se encontram ativas na constituição dos indivíduos reais (as substâncias individualizadas). À matéria delegaremos o princípio de individuação e quanto à forma a maneira como a matéria se organiza. A tese defendida por Aristóteles se contrapõe ao dualismo platônico, pois, aqui, é defendida uma imanência, ao invés de uma transcendência que sustentaria o nosso mundo. Assim, se há uma ideia que englobe vários seres, não podemos afirmar a sua existência independentemente dos objetos em devir e do sujeito que conhece, mas sim que ela existe na mente humana – fruto da indução, ou seja, de uma operação mental: entretanto, não podemos desvincular a ideia de seus próprios objetos. A ideia, através da atividade intelectual, é retirada dos objetos e elevada ao estatuto da universalidade, através de um mecanismo que abstrai as semelhanças: prova de que a essência não se encontrava previamente dada aos objetos. A ideia é estrutura do próprio objeto e não se encontra fora dele.

Matéria e forma são indissociáveis – uma não existe sem a outra – e ambas, sendo substâncias, agem na constituição das substâncias individuais. Essas, por sua vez, possuem seu aspecto essencial (aquele que nos permite classificar os diferentes seres em uma mesma espécie), mas podem receber atributos diferentes. “O ser se diz em vários sentidos”: ele pode ser referido como substância (Ser) ou acidente (modo de ser). Sendo que a substância designa aquilo que ele é, enquanto o acidente aquilo que ele pode ser.

De forma abrangente, podemos identificar nessa crítica de Aristóteles a Platão um confronto entre dois modelos de pesquisa científica que repercutiram na especulação e rigor filosóficos: a matemática e a biologia. Platão, logicamente, está do lado do pensamento matemático, uma vez que compreende a realidade sensível como a sombra de um mundo que conteria em si as verdades eternas: as ideias de triângulo, de círculo, de homem, de justiça, de coragem e de Bem (e etc.) constituiriam esse mundo transcendente. Já Aristóteles – de certa forma jogando o dualismo para dentro do indivíduo, mas para um indivíduo que existe somente em um mundo –, enxerga a realidade como única, encarando-a como um grande sistema ou um grande organismo, tal como aos olhos de um biólogo.

ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. 3ª versão. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 8ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004.

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