quarta-feira, 30 de junho de 2010

MEPHISTO


Mephisto

(Alemanha Ocidental/ Hungria/ Áustria – 1981 – 144min - Direção: István Szabó - Produção: Manfred Durniok)

Sinopse: Hendrik Höfgen é um ator alemão com ideais comunistas, convicto da função que o teatro desempenha na sociedade, uma vez que está imbuído de elementos que chocam e mobilizam as massas em direção a um caminho revolucionário. O teatro mesmo é visto como revolucionário, pois pretenderia, na visão do ator, ser um “teatro total”, onde o público participaria ativamente. Entretanto, o ator – que mais tarde fará fama em Berlim –, verá a ascensão do nazismo e de seus medos e com isso toda a destruição de um caráter em prol do sucesso particular. Deixa de lado, assim, seus sonhos bolchevistas para renovar a cultura alemã através de sua grande máscara: Mefistófeles.

1- Comentários Gerais:

Hendrik Höfgen tem uma vida de impasses. Quer mudar o mundo e quer ser o melhor no que faz. Esses objetivos são, a princípio, conciliáveis; porém, com a ascensão do nazismo, na Alemanha da primeira metade do século XX, tal sonho torna-se irrealizável. Ou ele tentaria mudar o mundo (sofrendo as consequências, a tortura e a morte), ou ele se adequaria ao sistema (e ascenderia socialmente, bem como artisticamente). Hendrik escolheu a segunda opção. E mesmo fugindo das consequências da primeira escolha, surpreendentemente, Hendrik caiu nas mesmas. Se por um lado ele conquistou a riqueza e o reconhecimento, por outro já não era ele que estava lá. Na verdade foi o outro de Hendrik que ascendeu, decretando assim a “morte” de nosso protagonista, uma morte lenta e dolorosa.

O ator provinciano, que – em Berlim – se torna um símbolo para sua geração, se esconde atrás de uma personagem da cultura alemã: Mefistófeles, aquele que concede proteção a Fausto – uma das grandes personagens alemães – na sua busca pela glória. Hendrik se torna tão notável que sua máscara, Mephistófeles – aquele que o gloriou –, passa a ser o próprio centro de sua vida. O seu passado passa a ser encarado como uma grande tolice, abandono que pouco a pouco se torna mais notável, pelo medo que o tomou e que, acima de tudo, o recompensou.

Cabe fazer, aqui, uma breve comparação entre Hendrik e Fausto, pois – apesar de interpretar Mefistófeles, de se esconder sob essa máscara e de confiar sua vida a sua personagem – Hendrik é que é, na verdade, o verdadeiro Fausto: aquele que se encontra entre a glória e a ruína.

Goethe – cuja versão de Fausto se tornou a mais conhecida e respeitada – deu vida nova a um desses grandes mitos alemães. Tal figura continuava, contudo, sendo um enigma ímpar, pois “onde quer que se apresentasse, [Fausto] tornava-se logo o centro das atenções. [...] Ele próprio atribuía-se o título de ‘filósofo-mor entre os filósofos’ a dava-se ares de um semi-deus. Jactava-se de poder reanimar os mortos, dizia-se médico, praticava a astrologia, era vidente, profeta e quiromante”[1].

Fausto, porém, não satisfeito com tudo o que já possuía, desejou incessantemente mais: ele desejou a glória, a totalidade. Hendrik se encontra numa mesma busca, pois ao ascender deseja ascender cada vez mais. E assim como Fausto – “que teria realmente sido envolvido por maquinações políticas e seria também sempre desiludido por Mefistófeles, que se propõe a desfigurar maliciosamente os seus ideais e trair as suas esperanças” [2] –, Hendrik encontra seu Mefistófeles – ou seja, o general – que o protege, que o eleva, mas que está disposto a esmagá-lo como um inseto caso a ator se atreva a ir além de seus limites. Hendrik Höfgen abdica de sua liberdade para ser amado; não por uma mulher, mas pela sociedade, pelo regime nazista, pelo poder.

De imediato Hendrik escolhe permanecer na Alemanha, mesmo com a ascensão do nazismo. Para ele, o teatro jamais desapareceria, independentemente do rumo que o país levasse: ser ator, para ele, asseguraria sempre um espaço seguro, por mais que as evidências apontassem para o contrário. Acima de tudo, ser ator é considerado como um pleno exercício da liberdade, muito mais do que um simples ofício. Hendrik, porém, ainda conseguiu se persuadir, imaginando que o contexto representava apenas um momento, e que logo os nazistas deixariam o poder. A língua alemã era mais importante – e seu lugar no teatro, portanto, não poderia ser deixado.

Hendrik Höfgen vive num universo sufocado. De um lado um brilhante ator e, de outro, alguém que só se preocupa com o amor próprio, chegando mesmo a admitir que “sim, eu era muito talentoso, mas muito covarde”. Um covarde que tinha consciência do papel que a arte desempenha no mundo, a saber: o motor que pode mobilizar as massas em prol de algum ideal nobre, pois o ator encoraja, ele é o exemplo. Sua função é a de mobilizar. Entretanto, Hendrik, no momento final de seu desespero diz: “O querem de mim? O que? Só sou um ator”. Diante de sua ruína, de sua morte – mesmo que uma morte metafórica – Hendrik toma consciência de seu lugar – ou daquele lugar do qual nunca deveria ter saído.

Hendrik – aquele que abdicou de si – e Fausto – o heroi trágico, velho e cego. Fausto representa (e aqui, fazemos alusão a Hendrik) “o sonho do ser humano em querer decidir livremente sobre o seu destino. Uma utopia, mas ao mesmo tempo a ilusão mais válida do homem a seu respeito, ideal insuperável de qualquer época e lugar!” [3]. Cabe ressaltar ainda uma questão, porém deixando em aberto: há intérpretes que admitem a hipótese de que Fausto fez a aposta – ou seja, se aliou a Mefistófeles – com o intuito de perdê-la. Transposta para o filme “Mephisto”, tal hipótese certamente nos levaria a questões sem fim.

“Da sabedoria é conclusão superior:

Faz jus à liberdade e à sua existência

Só quem diariamente a conquistar com destemor.

Cercado de perigos é assim a vivência

Dessas crianças, adultos e velhos a se agitar.

Gostaria eu de tal multidão vislumbrar

E conviver com homens livres em terra livre

Para poder dizer ao momento fugaz:

Continua aqui. És belo! Não te vás!

Os vestígios de meus dias, na Terra passados,

Nem em milênios poderão ser apagados.”

(FAUSTO - Versos 11574-11584)

2- Filosofia e Política:

Cabe elucidar, em última análise, a papel eminentemente político que a arte e a filosofia desempenham na formação da sociedade. Abrir um tópico para tal discussão, mesmo que restem mais perguntas do que respostas, representa um âmbito essencial na filosofia: o campo das problematizações.

A arte teatral é tratada como um meio para a divulgação de ideologias, o que contraria um sentido clássico no qual visaríamos somente contemplar, atingir a beleza ou participar de uma experiência estética. Colocamos, então, as seguintes questões: pode a arte estar desvinculada da política? Pode a arte não passar visões de mundo? Existe arte neutra?

Talvez encontremos possíveis respostas ao longo do filme. Nos deteremos em dois aspectos. O primeiro, já comentado no tópico anterior, mostra como o nazismo se utilizou de Hendrik, grosso modo, como uma espécie de “garoto propaganda”, onde seu trabalho, aliado aos interesses políticos de uma “raça pura”, renovou a arte de sua pátria, criando uma base cultural para a ascensão do regime vigente.

O segundo ponto a destacar, também já comentado – e que não é propriamente dissociado do primeiro –, exalta o fato de que Hendrik tem plena consciência de sua influência política – de seu papel exemplar –, mesmo que tenda a considerar o artista como alguém que está acima do ser humano comum. Afirma em determinado momento: “Nós, artistas, temos que estar acima de tudo o que acontece no mundo; somos um exemplo e encorajamos os outros; não importa que sujeira haja no mundo; a verdadeira arte sempre será pura e verdadeira”.

O campo da arte é o campo da verdade e, para Hendrik, ela ditaria os parâmetros; e ele – o artista – seria o exemplo: cabe àquele que utiliza sua máscara fazer um bom ou mau uso dela, para si e para os outros.

Na aurora do século XXI, temos a incontestável ascensão da indústria cultural, que mudou drasticamente a maneira com que as pessoas se relacionam com os “objetos de arte”. Vale exaltar também os valores que nos bombardeiam através de tal indústria, de seus meios, de suas músicas, de seus filmes e de suas dramatizações diárias. Nesse sentido, seria de grande valor um estudo aprofundado sobre a relação entre indústria cultural, ideologia e política inserida numa questão mais fundamental; a saber: o que é arte?

Referências bibliográficas:

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto [Tradução de Jenny Klabin Segall; prefácios de Erwin Theodor e Antônio Houaiss; posfácio de Sérgio Buarque de Holanda]. – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981. (Grandes obras da cultura universal; v. 3)


[1]GOETHE, Johann Wolfgang von. Prefácio [de Erwin Theodor]. In: Fausto. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981. p.1.

[2] Id. Ibid. pp. 13-14.

[3] Id. Ibid. p. 14.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A Abertura Pela Arte


A ABERTURA PELA ARTE

If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is: infinite.[1]

William Blake

Henri Bergson tematizou a arte sob o viés da intuição e da duração. A intuição representa um problema notável na história da filosofia, pois se coloca como uma apreensão da totalidade, sem mediação alguma – e sem a necessidade da análise, que é método da inteligência. A duração, noção central na obra do filósofo, é devir – pura mudança qualitativa incessante – mas que, por sua vez, é ofuscada pela necessidade de ação.

Como que um “veu” colocado entre nós e o devir, a inteligência – que é capital para o avanço da ciência, com seu método fragmentário – sufocou a percepção e a tornou útil. Nisso que a tornou útil, a tornou utilitária. E quando somos utilitários não percebemos a realidade concreta, pois selecionamos aquilo que é do nosso interesse prático e abandonamos aquilo que é “inútil”: agimos de acordo com o espaço geometrizado, calcando-nos numa percepção sólida. A questão do movimento – estudado pelos procedimentos científicos – ilustra fielmente esse problema central na filosofia bergsoniana:

Bergson mostrou que o estudo científico do movimento, dando o primeiro lugar aos métodos de referência espacial, conduzia à geometrização de todos os fenômenos do movimento, sem nunca tocar diretamente o poder de devir manifestado pelo movimento. O movimento, examinado objetivamente, como o faz a mecânica, já não é mais que o transporte no espaço de um objeto que não muda. [...] Bergson mostrou, em várias ocasiões, que a mecânica – na verdade, a mecânica clássica – não nos dava dos mais diversos fenômenos senão traçados lineares, linhas inertes, sempre percebidas em seu acabamento, nunca verdadeiramente vividas em seu desenvolvimento circunstancial, a fortiori nunca apreendidas em sua produtividade.[2]

O presente trabalho visa elucidar a função que a arte pode desempenhar numa espécie de abertura da percepção humana, resultando numa apreensão de um todo não captado pelos procedimentos analíticos de uma inteligência que apenas o considera como “a soma das partes”. A intuição, oposta à análise, e capital para a experiência artística – que é experiência concreta – nos dá uma realidade única e muitas vezes inexprimível em caracteres racionais. A intuição nos dá aquilo que o objeto possui em sua singularidade e não um universo relacional matematizado. Num primeiro momento, partiremos da distinção de duas noções de memória – a memória-hábito e a memória-recordação – para relacioná-las com a liberdade; depois, sabendo que ser livre somente é possível no segundo tipo de memória, iremos tematizar em que circunstâncias o objeto da arte é objeto da arte enquanto tal, ou seja, em que momento a experiência artística – que é livre – se traduz numa experiência concreta.

“O mecanismo cerebral é feito para recalcar a quase totalidade do passado no inconsciente e introduzir na consciência apenas aquilo que é de natureza a iluminar a situação presente, a ajudar a ação que se prepara, a resultar, enfim, num trabalho útil” [3]: é assim que se dá a memória-hábito. Ela é inteligente por excelência, pois funciona a partir de uma repetição que reabilita experiências passadas – como, por exemplo, a locomoção, a fala, etc. É indispensável a nossa vida, mas possui um caráter mecânico, não nos aproximando criticamente dos movimentos realizados: aqui nos encontramos no campo da necessidade, não no da necessidade lógica, mas no da própria vida que se desenvolve. Entretanto, em meio aos atos mecânicos nós percebemos que algo continua a subsistir: nós percebemos que algo “nos persegue”. E esse algo é nosso passado: “sem dúvida, pensamos apenas com uma pequena parte de nosso passado; mas é com nosso passado inteiro, inclusive nossa curvatura de alma original, que desejamos, queremos, agimos” [4].

A memória-recordação ganha papel de destaque, pois é aquela que reproduz o passado enquanto passado e que o revive – sem, contudo, visar uma utilidade nessa retomada. A inutilidade de tal memória é essencial, pois esse é o ponto que a diferencia da memória-hábito. A memória-recordação guarda todos os acontecimentos da vida sob a forma de imagens-lembranças, onde tudo está registrado com todas suas circunstâncias únicas, com todo o nosso eu, que é fluidez contínua. Entramos em contato, aqui, com o eu profundo que se contrapõe ao eu superficial da inteligência. O eu da memória verdadeira é aquele que intui, que é livre e criador:

A intuição subsiste sempre, embora vaga e descontínua, semelhante a uma lâmpada quase apagada que se reavive só de vez em quando por breves instantes. [...] Ela consegue projetar uma luz mais ou menos débil sobre a nossa liberdade, sobre o lugar que ocupamos no universo, sobre a nossa origem e, talvez, até sobre o nosso destino, quebrando assim a escuridão em que a inteligência nos deixa. [5]

A liberdade não estaria no eu de superfície, no eu mecânico, mas sim no eu profundo que condensa toda a sua personalidade – todas as suas imagens – de maneira dinâmica: esse é o eu “que quer, que se apaixona, que amadurece, que evolui, que cresce sem cessar, que é puro dinamismo e constitui a verdadeira personalidade do indivíduo” [6]. Estamos diante, propriamente – e no que concerne ao indivíduo –, do campo da arte: o campo da profundidade, da liberdade, da criação, da duração – da qualidade. Os deterministas da matéria quiseram, em vão, estender seu princípio para o plano da consciência, tentando quantificar algo que é criação contínua e que pode assumir todas as direções imagináveis: não podemos aplicar tais quadros deterministas na consciência, pois ela é liberdade e possibilidade.

Para Bergson, o artista é aquele que se desligou da utilidade – um “distraído” – mesmo que não completamente. Pelo fato de não contemplar o mundo com um olhar utilitário, a sua visão vai além do comum: ela retira o “veu” que antes fragmentava a realidade em partes mecânicas que se justapunham. Essa nova visão é a própria experiência da abertura. Abertura para o novo, para a criação, para o riso. Pergunta Bergson: “o que visa a arte, a não ser nos mostrar, na natureza e no espírito, fora de nós e em nós, coisas que não impressionavam nossos sentidos e nossa consciência?” [7]. O artista é aquele que cria tornando sensível, que nos impacta de imediato e sem abstração – que fixa na tela, na música, no palco, no livro – fugindo dos símbolos impostos pela inteligência científica. Pelo próprio fato de ser mais desprendido da realidade, o artista consegue ver nela coisas que já não vemos mais:

Isso seria incompreensível, caso a visão que temos ordinariamente dos objetos exteriores e de nós mesmos não fosse uma visão que nosso apego à realidade, nossa necessidade de viver e de agir, nos levou a estreitar e a esvaziar. De fato, não seria difícil mostrar que, quanto mais estamos preocupados em viver, tanto menos estamos inclinados a contemplar, e que as necessidades da ação tendem a limitar o campo da visão. [8]

A arte se constitui, então, como uma visão mais direta da realidade, uma vez que visa apreender o que certo objeto possui de único, de singular. Assim, a arte “impõe-se” contra a criação de rótulos, de modelos prontos e acabados e visa apreender o que a coisa é, em sua duração, em sua concretude: ela abre as “portas da percepção”, pois nega a memória-hábito, mergulha na memória-recordação e nos lança para o futuro. A mais alta ambição da arte é revelar-nos a natureza. [9]

BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, G. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento [tradução de Antonio de Pádua Danesi]; 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Ensaios e conferência [Tradução Bento Prado Neto]. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BERGSON, H. Os pensadores. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo, Abril Cultural, 1979.

BERGSON, H. A evolução criadora [tradução de Bento Prado Neto]. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade [tradução de Ivone Castilho Benedetti]; 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GALEFFI, R. Presença de Bergson. Bahia: Publicações da Universidade da Bahia, 1961.


[1] “Se as portas da percepção fossem limpas, tudo apareceria ao homem como realmente é: infinito”. William Blake em “The Marriage of Heaven and Hell”.

[2] BACHELARD, G. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 263-264.

[3] BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 5

[4] Id. Ibid. p. 6.

[5] GALEFFI, R. Presença de Bergson. Bahia: Publicações da Universidade da Bahia, 1961. p. 44.

[6] Os pensadores: Bergson. Consultoria de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. XIV.

[7] BERGSON, H. A percepção da mudança. In: O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes: 2006. p. 155.

[8] Id. Ibid. p. 157.

[9] BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 116.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Cogito e a Fundamentação da Ciência


O COGITO E A FUNDAMENTAÇÃO DA CIÊNCIA

[...] Só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos sentidos, [...] não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conhecer pelo pensamento [...]. (DESCARTES, 1979, p. 98)

Propomos, nesse pequeno trabalho, elucidar o caminho percorrido por Descartes dando ênfase à afirmação da existência da coisa pensante e destacando sua importância como fundamento de todo o conhecimento que, por sua vez, pretende se apoiar em bases sólidas. O conhecimento receberia, assim, o estatuto de cientificidade que garantiria um conhecimento verdadeiro acerca da realidade.

Na meditação primeira temos o momento de suspensão total onde “para combater a força do provável, e para conseguir duvidar, finjo acreditar na existência dum gênio mau que falsearia constantemente os meus pensamentos” [1], mas que se apresenta como capital para a descoberta da primeira certeza – já na meditação segunda –, enunciada em consequência da própria necessidade da dúvida. Através de sua radicalização, que coloca em questão até mesmo as proposições matemáticas – por sua vez representando o conjunto de noções simples, quantificáveis, universais, que se apresentavam como verdadeiras e existentes –, Descartes admite que, para que a dúvida seja possível, deve-se, necessariamente, admitir a existência do sujeito que realiza o ato de duvidar. O filósofo chega ao Cogito e o reconhece como núcleo que resiste à dúvida metafísica, pois mesmo que exista um Deus que o engane, Ele jamais poderia fazer com que o ser enganado fosse reduzido ao nada:

Essa dúvida não teria saída, se Descartes, como os filósofos anteriores, visasse somente a seus objetos, pois todos são objetos de conhecimento, os inteligíveis como os sensíveis. Não se pode, pois, como o prisioneiro de Platão, voltar-se para um mundo de realidades que escapariam à dúvida. Mas considera essa incerteza em si mesma, na medida em que é um pensamento em meu pensamento. Sob esse aspecto, minha dúvida, que é meu pensamento, está unida à existência desse eu que pensa. Não posso perceber que eu penso, sem ver, com certeza, que existo: Cogito, ergo sum. Se eu viesse a duvidar dessa relação, tal dúvida implicaria novamente minha afirmação. A certeza de minha existência como pensamento é a condição de minha dúvida. Assim, Descartes chega a um primeiro juízo de existência, substituindo à vã procura dos objetos a reflexão sobre aquilo mesmo que procura. [2]

A primeira certeza “eu sou, eu existo” – apoiando-se na axiomática “para pensar, é preciso ser”, “o nada não realiza atos” e no princípio de causalidade – resiste, como já dito, a toda dúvida e inaugura a cadeia das razões, mesmo sendo uma certeza que por si só não garanta a existência do mundo exterior. Entretanto, nos dá um tipo exemplar de proposição verdadeira. Dessa primeira verdade, que é existencial, Descartes chegará à determinação essencial do sujeito que realiza o ato de duvidar, descobrindo, “com todo o cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim” [3], que o pensamento é o único atributo que não lhe pode ser retirado, enquanto sujeito do ato de afirmar, negar, desejar e pensar.

Esse segundo passo é tão importante quanto o primeiro, pois dá prosseguimento à ordem das razões e prepara o momento no qual Descartes analisará uma ideia que assegurará a existência do mundo exterior: a ideia de Deus, mas nesse caso, derrubando a hipótese de um Deus Enganador e provando a existência de um Deus Veraz, através do estabelecimento da relação entre a ideia de Deus e o objeto Deus [4]. Mas, por enquanto, a única certeza que tenho (numa perspectiva da primeira pessoa) é que possuo a propriedade de pensar, o que faz do pensamento o atributo essencial da res cogitans. O Cogito exalta a prioridade do autoconhecimento sobre o conhecimento do mundo, ou seja, antes de construir o edifício do conhecimento cabe conhecer o sujeito cognoscente e refletir sobre seus estados de consciência:

Esta primeira certeza não fornece ainda uma refutação do ceticismo, mas apenas um primeiro princípio, um "ponto arquimediano", como afirma Descartes, a partir do qual é preciso avançar. Permanecer neste ponto não proporcionaria o fundamento último da Ciência e condenaria o sujeito a uma posição solipsista, ou seja, o aprisionaria na solidão metafísica de sua consciência individual. Portanto, para superar esta situação é preciso refutar as razões de duvidar partindo do "porto seguro" oferecido pelo Cogito. [5]

A meditação segunda nos traz a ideia de que o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo. A realidade corporal se dispõe, caso não constituísse – nesse momento – uma ilusão, em aspectos tão variáveis que o empreendimento epistemológico necessário seria bem maior se (e quando) visássemos conhecê-la verdadeiramente. A certeza da existência da coisa pensante e a determinação de que o pensamento é seu atributo essencial são as bases seguras – e metafísicas – que, juntamente com as provas da existência de um Deus Veraz que assegura a existência do mundo exterior, permitirão a Descartes seguir adiante em sua fundamentação da nova ciência. A física mecânica, que se impôs à física aristotélica, é quantitativa – é matemática – ao contrário da física anterior, que é qualitativa. Se o conhecimento da matemática não for validado – e se a hipótese do Deus Enganador não for descartada – nos encontraríamos diante de um edifício de conhecimento que não corresponderia a uma realidade externa à coisa pensante. As provas da existência de Deus – sendo aí importantíssima a consciência da solidez da res cogitans – darão início à destruição e reavaliação do procedimento da dúvida [6].

A distinção da alma e do corpo representa o ponto de apoio no qual repousa toda a física de Descartes. E o Cogito é seu sustentáculo. No exemplo do pedaço de cera que sofre transformações diante do fogo, Descartes chega à conclusão de que não seria através da percepção sensível e muito menos da imaginação que conheceríamos o mundo corporal, mas sim “pela única inspeção do espírito”. Assim, a sensação não desempenharia o papel principal no ato de conhecimento, mas sim o entendimento que, por sua vez, “não é determinado do exterior por seus objetos, mas de dentro por sua exigência interna de clareza e distinção” [7].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BATTISTI, César Augusto. O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002 (Série estudos filosóficos; n. 5)

BEYSSADE, Michelle. Descartes [tradução de Fernanda Figueira]. Lisboa: Edições 70, 1986.

BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. Tradução Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977.

DESCARTES, René. Meditações; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores).

GLEIZER, Marcos André. “Penso, logo existo": Da fundamentação da Ciência à descoberta da consciência. Disponível em: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESFI/Edicoes/38/artigo147880-4.asp. Acesso em: 24 jun. 2010.


[1] BEYSSADE, Michelle. Descartes [tradução de Fernanda Figueira]. Lisboa: Edições 70, 1986. p. 35

[2] BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. Tradução Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 68

[3] DESCARTES, René. Meditações; tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores). p. 92

[4] BATTISTI, César Augusto. O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002 (Série estudos filosóficos; n. 5). p. 377

[5] GLEIZER, Marcos André. “Penso, logo existo": Da fundamentação da Ciência à descoberta da consciência. Disponível em: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESFI/Edicoes/38/artigo147880-4.asp. Acesso em: 24 jun. 2010.

[6] BATTISTI, César Augusto. O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento. Cascavel: EDUNIOESTE, 2002 (Série estudos filosóficos; n. 5). p. 278.

[7] BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. Tradução Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 70.

sábado, 19 de junho de 2010

...





"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."




Ensaio sobre a cegueira - José Saramago (1922-2010)




Em agradecimento a um dos livros fundamentais em minha vida.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Homo videns


Homo videns: Televisão e pós-pensamento (excertos)

Giovanni Sartori

Atualmente estamos passando por um rapidíssimo processo revolucionário dos meios de comunicação. Um processo com muitos tentáculos (internet, computadores pessoais, espaço cibernético, etc), mas que, basicamente, é caracterizado por um denominador comum: a capacidade de ver à distância – tele-ver – surgindo daí o nosso vídeo viver. E é em consideração deste fenômeno que no nosso livro focalizamos a questão da televisão, constituindo como tese de fundo a afirmação de que o vídeo está transformando o homo sapiens em homo videns no qual a palavra vem sendo destronada pela imagem. Tudo se torna visualizado. Mas, neste caso, o que vai acontecer com as coisas que não são visíveis, que constituem de fato a maior parte da realidade? Assim, enquanto nos preocupamos com os que controlam os meios de comunicação, não nos damos conta de que escapou do nosso controle o próprio instrumento em si.

Muitos se queixam da televisão achando que está incentivando a violência, que está informando pouco e mal, ou até mesmo acusando-a de ser causa de retrocesso (...) Isso é verdade. Todavia, é ainda mais verdadeiro e ainda mais importante entender que a televisão está mudando a natureza do ser humano. É este o aspecto essencial, aliás essencialíssimo, que até hoje escapou da atenção da maioria das pessoas. Entretanto, é bastante evidente que o mundo em que vivemos já está se apoiando nos ombros da “geração-televisiva”: uma espécie recentíssima de ser humano criado pela tele-visão – diante de um televisor – antes mesmo de saber ler e escrever.

Por isso, (...) vou tratar e me preocupar com a primazia da imagem, isto é, com uma espécie de predomínio do visível sobre o inteligível que conduz para um ver sem entender. E é sobre esta premissa fundamental que pretendo examinar a vídeo-política, quer dizer, o poder político da televisão (...)

Homo sapiens: quem primeiro usou esta expressão para classificar a espécie humana foi Lineu na sua obra Sistema da Natureza, dada a público em 1758. Do ponto de vista fisiológico o homo sapiens não tem nada que o torne único entre os primatas, que constituem o gênero do qual a raça humana é espécie. O que torna o homo sapiens único é a sua capacidade simbólica; com efeito, foi este aspecto que induziu Ernst Cassirer a definir o ser humano um “animal simbólico”. Cassirer explica isso da seguinte forma:

O homem não vive dentro de um universo puramente físico, mas sim em um universo simbólico. Língua, mito, arte e religião (...) são os vários fios que compõem o tecido simbólico (...). Qualquer progresso humano no pensamento e na experiência fortalece esse tecido (...). A definição do homem como animal racional não perdeu nada do seu valor (...), mas é fácil perceber que tal definição é uma parte de um todo. Pois lado a lado com a linguagem conceitual há uma linguagem do sentimento, lado a lado com a linguagem lógica ou científica existe a linguagem da imaginação poética. De início a linguagem não exprime pensamentos ou ideias, mas sentimentos e afetos.

Por conseguinte, a expressão animal symbolicum abrange todas as formas de vida cultural do homem. E a capacidade simbólica dos seres humanos se desdobra na linguagem, na capacidade de comunicar por meio de uma articulação de sons e signos “significantes”, providos de significado. Daí podemos dizer também que o homem é um animal que fala, um animal loquax “constantemente em diálogo consigo mesmo” (Cassirer), aliás pode-se dizer que esta é a característica que o distingue de qualquer outra espécie de ser vivo.

Alguém pode retrucar que também os animais se comunicam por meio de uma linguagem própria. Em certo aspecto, isso é verdade, mas, no seu conjunto, a realidade não se apresenta deste modo. A assim chamada linguagem animal só transmite sinais. E a diferença absolutamente fundamental é que o ser humano possui uma linguagem capaz de raciocinar a respeito de si próprio. O homem reflete sobre o que diz. E não apenas a comunicação, mas também o pensamento e o conhecimento que caracterizam o homem como animal simbólico são construídos em forma de linguagem e pela linguagem. A linguagem não é só um instrumento para ele se comunicar, mas também para pensar. E para pensar não é necessário ver. De fato, (...) um cego (...) mesmo não podendo ver as coisas, é capaz de pensar. Na realidade, sendo as coisas que pensamos “invisíveis”, nem mesmo quem enxerga pode vê-las (...)

A televisão – como o próprio nome diz – consiste em “ver de longe” (tele), e portanto, levar à presença de um público de espectadores coisas para ver, quer dizer, visualmente transmitidas de qualquer parte, de qualquer lugar e distância. E na televisão o fato de ver predomina sobre o falar, no sentido que a voz ao vivo, ou de um locutor, é secundária, pois está em função da imagem e comenta a imagem. É por causa disso que o telespectador passa a ser mais um animal vidente do que um animal simbólico. Para ele as coisas representadas por meio de imagens passam a contar e pesar mais do que as coisas ditas por palavras. Esse fato constitui realmente uma virada radical de direção, pois enquanto a capacidade simbólica distancia o homo sapiens do animal, o predomínio da visão o aproxima de novo às suas capacidades ancestrais, isto é, ao gênero do qual o homo sapiens é espécie (...)

Até o advento da televisão, em meados do nosso século XX, a capacidade visual do homem se desenvolvera em duas direções: sabíamos, por um lado, ampliar o pequeno (por meio do microscópio) e, por outro, aumentamos nossa capacidade para ver de longe (binóculos e mais ainda com o telescópio). A televisão, porém, oferece-nos a possibilidade de ver tudo sem necessidade de irmos aos objetos (...)

É justamente a televisão que, antes de mais nada, vai modificar, e essencialmente, a própria natureza da comunicação, deslocando-a do contexto da palavra (impressa ou transmitida por rádio) para o contexto da imagem. A diferença é radical. A palavra é um “símbolo” (...) e leva alguém a compreender somente quando for entendida, quer dizer, quando conhecemos a língua a que pertence, do contrário é letra morta, um sinal ou som qualquer. Ao contrário, a imagem é pura e simples representação visual. Assim para entender a imagem, é suficiente vê-la; e para ver basta a visão, é suficiente não ser cego. De fato não se vê a imagem em chinês, árabe ou inglês. Repito: é só vê-la e basta. Enquanto a palavra é parte integrante e constitutiva de um universo simbólico, a imagem não é nada disso. É óbvio, então, que o caso da televisão não pode ser tratado por analogia, isto é, como se a televisão fosse uma continuação e uma mera ampliação dos instrumentos de comunicação que a precederam. Através da televisão nos aventuramos em uma realidade radicalmente nova. Por isso a televisão não é um acréscimo, mas, antes de mais nada, uma substituição que derruba a relação entre o ver e o entender. Antes da televisão tomávamos conhecimento do mundo e de seus acontecimentos mediante a narração oral e escrita; hoje podemos vê-los com os nossos olhos, e a narração – ou a sua explicação – é quase apenas em função das imagens que aparecem no vídeo.

Mas se isto é verdade, então decorre que a televisão está produzindo uma espécie de permutação, uma metamorfose, que atinge a própria natureza do homo sapiens. É por isso que a televisão não é só um instrumento de comunicação; é ao mesmo tempo também uma paideia[1], um instrumento “antropogenético”, um meio que gera um novo anthropos, um novo tipo de ser humano (...) tese que se fundamenta sobre o fato consumado de que nossas crianças ficam olhando a televisão, horas a fio, antes mesmo de aprenderem a ler e a escrever (...)

A alegação de que uma criança abaixo dos três anos de idade não compreende aquilo que está vendo não se justifica, pois é certamente verdade que “absorve” com maior intensidade a violência como um modelo excitante e, quem sabe, vencedor na vida adulta. Mas por que limitar o problema à violência? A verdade maior e mais abrangente é que a primeira escola da criança (a escola divertida que precede a escola enfadonha) é a televisão, é um animal simbólico que recebe o seu imprint, o seu molde formativo, de um mundo feito de imagens, totalmente centralizado no ver. Nesta paideia, a predisposição à violência (...) é apenas um gomo do problema. Na verdade, o problema de fundo é que a televisão criou e está criando um homem que não lê, que revela um alarmante entorpecimento mental, um “moloide criado pelo vídeo”, um viciado na vida dos videogames. “No começo era a palavra”: diz o Evangelho de João. Hoje, porém, poder-se-ia dizer que “no começo está a imagem”. E mediante a imagem que transpõe a palavra se instala uma cultura juvenil descrita com muito acerto por Alberoni (1997):

Os jovens caminham no mundo adulto da escola, do estado (...) da profissão como clandestinos. Na escola ouvem preguiçosamente lições (...) que rapidamente esquecem. Não leem os jornais (...) Ficam trancados no próprio quarto junto com os pôsteres dos seus herois, olham os próprios programas, andam pela rua mergulhados na sua música preferida. Despertam novamente só quando, de noite, encontram-se na discoteca. Finalmente, quando saboreiam a ebridade de estarem juntos, experimentam a satisfação de existir como um único coletivo dançante.

Não saberia como representar melhor a geração-TV, isto é, uma criança criada pela televisão. Será que tal criança nunca fica adulta? Forçosamente, e de algum modo, é claro que sim. Mas, mesmo assim, tratar-se-á sempre de um adulto que continua surdo, durante a vida, aos estímulos da leitura e do saber transmitidos pela cultura escrita. Os estímulos a que continua respondendo, quando adulto, são quase que exclusivamente audiovisuais. Por conseguinte, a geração-TV não tem como crescer mais que isso (...)

A mensagem com que a nova cultura se recomenda e auto-elogia é que a cultura do livro pertence a poucos (é elitista), ao passo que a cultura audiovisual pertence a muitos. Mas o número dos usuários – poucos ou muitos – não modifica a natureza e o valor de uma cultura. E se o preço de uma cultura para todos é a desqualificação em uma sub-cultura que, afinal – de um ponto de vista qualitativo -, é “não-cultura” (ignorância cultural), então a operação resulta apenas em uma perda.

(...) O homo sapiens deve seu saber à capacidade de abstração. As palavras que articulam a linguagem humana são símbolos que evocam também “representações”, isto é, evocam na mente configurações, imagens de coisas visíveis. Mas isso acontece somente com os nomes próprios e com as “palavras concretas” – tais como: casa, cama, mesa e semelhantes (...) Quanto ao resto, quase todo o nosso vocabulário cognitivo e teórico consiste em palavras abstratas que não têm correspondência exata com as coisas visíveis, e cujo significado não pode ser referido nem traduzido em imagens. Assim, por exemplo, a palavra cidade corresponde a algo ainda visível, mas nação, Estado, povo, soberano, burocracia (...) não representam nada visual, são conceitos abstratos, elaborados por processos mentais dedutivos, que representam entidades mentalmente construídas. E todo o nosso controle da natureza, como também toda a nossa capacidade de gerir o habitat político-econômico em que vivemos tem seu eixo exclusivo em um pensar mediante conceitos que são entidades invisíveis. (...)

Em suma, e sintetizando: (...) o saber do homo sapiens se desenvolve na dimensão de um mundo intelligibilis (de conceitos) que não é de modo algum o mundus sensibilis, o mundo percebido pelos nossos sentidos. Por isso a questão consiste no fato de que a televisão inverte o progredir do sensível ao inteligível, virando-o num piscar de olhos para um retorno ao puro e simples ver. Na verdade a televisão produz imagens e apaga conceitos (...) e desse modo atrofia nossa capacidade de abstração e com ela nossa capacidade de compreender (...) É justamente este o processo que vem sendo atrofiado quando o homo sapiens é suplantado pelo homo videns. (...)

O advento da televisão e, em seguida, da tecnologia dos multimídia é realmente um fato inevitável. Todavia, se ocorre algo inevitável nem por isso se deve aceitá-lo cegamente (...) Ninguém pode deter o progresso tecnológico, mas nem por isso devemos deixá-lo escapar do nosso controle e submeter-nos servilmente à rendição.

SARTORI, Giovanni; Homo videns: televisão e pós-pensamento, S.P, Edusc, 2001.


[1] Paideia: Palavra grega derivada de paidós = menino, menina, infantil e que significa formação, educação; daí a palavra pedagogia.