sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

LIBERDADE E DETERMINISMO SOB TENSÃO: ESPINOSA E SARTRE


LIBERDADE E DETERMINISMO SOB TENSÃO: ESPINOSA E SARTRE

A vontade não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária.[1]

– Espinosa

Você é livre, escolha, quero dizer, invente[2].

– Sartre

A questão da liberdade da vontade ou livre arbítrio é um tópico fundamental na história da filosofia, representando um ponto de tensão entre inúmeras teses contrárias. Tal embate entre diferentes doutrinas e filosofias envolve, primordialmente, a questão da essência humana – dada ou não de antemão –, bem como a divergência quanto à constituição de um universo necessário ou contingente. O seguinte trabalho pretende tematizar, em linhas gerais, um possível confronto entre a perspectiva de Baruch Espinosa (racionalismo absoluto) e a de Jean-Paul Sartre (fenomenologia[3]), no que diz respeito à natureza e à liberdade humanas. Começaremos seguindo a linha cronológica da história da filosofia, abordando a problemática, primeiro, em Espinosa e, segundo, em Sartre. Nosso objetivo é o de mostrar a importância de tal discussão, uma vez que vivemos em uma era de enormes avanços técnico-científicos e de pesquisas genéticas onde o homem domina, cada vez mais, o seu meio e empreende, igualmente, uma busca dos segredos de uma suposta natureza que lhe seria própria.

***

Espinosa insere-se em um real totalmente cognoscível. Sua obra magna, a saber, a Ética demonstrada à maneira dos geômetras representa seus esforços em conduzir o homem à verdadeira liberdade. É importante frisar que, em decorrência de seu racionalismo absoluto, a filosofia de Espinosa é partidária da inteligibilidade integral do real. A incompreensão dos eventos do mundo, por exemplo, seria fruto de uma ignorância das causas que convergiriam na constituição dos eventos do próprio mundo – o universo, para Espinosa, é necessariamente determinado por uma raiz única. A filosofia espinosista estabelece, em primeiro lugar, as causas para, depois, ir em direção aos efeitos: e essa causa, a causa primeira de toda a realidade, seria uma única substância absolutamente infinita – a Natureza, ou seja, Deus.

Seguindo o nexo necessário das causas, ou seja, os efeitos necessários decorrentes da natureza da substância absolutamente infinita, nós teríamos a constituição do homem como junção de uma modificação de dois atributos imanentes à própria substância. Esses atributos – que são os únicos que conhecemos, embora sejam infinitos –, o da extensão e o do pensamento, não se separariam da substância, estando de acordo com sua natureza. Cada atributo, por sua vez, pode somente produzir modalidades possíveis: ou seja, para Espinosa, a Natureza somente produz seres que, essencialmente, não possuem contradições. E se eles são finitos, não seria por uma contradição interna, mas sim porque são limitados por seres do mesmo gênero e, assim, impedidos de exercer sua natureza de forma livre – a saber, impedidos de perseverar em seu próprio ser. [4]

Espinosa não opõe a liberdade à necessidade. No homem, a atividade (a ação livre) só se dá a partir do momento em que ele exerce a sua natureza, constituindo-se não como causa inadequada, mas sim como causa eficiente de suas ações, o que significa agir sem ser coagido por causas exteriores à constituição de sua essência singular. A liberdade humana, assim, é entendida como uma autodeterminação – de si mesmo –, pois vê no homem uma essência pronta a se desenvolver e que está vinculada, necessariamente, a Deus. Ser livre seria agir de acordo com suas próprias determinações – livre, portanto, de crenças imaginárias, que nos levariam a padecer ao invés de agir.

Segundo Espinosa, um dos grandes preconceitos da tradição filosófica e religiosa de sua época foi o da crença no livre arbítrio. A vontade, para o filósofo, está vinculada à própria natureza do indivíduo e às causas que o originaram ou o afetaram:

A vontade, tal como o intelecto, é apenas um modo definido do pensar. Por isso, nenhuma volição pode existir nem ser determinada a operar a não ser por outra causa e, essa, por sua vez, por outra, e assim por diante, até o infinito. Caso se suponha que a vontade é infinita, ela também deve ser determinada a existir e a operar por Deus, não enquanto substância absolutamente infinita, mas enquanto possui um atributo que exprime a essência infinita e eterna do pensamento. Assim, seja qual for a maneira pela qual a vontade é concebida, seja como finita, seja como infinita, ela requer uma causa pela qual seja determinada a existir e a operar. Portanto, ela não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária ou coagida. (ÉTICA, I 32, dem.)

O livre arbítrio, assim, é uma ilusão da imaginação. Para Espinosa, não há um poder absoluto no que diz respeito à escolha, pois se um indivíduo escolheu uma determinada alternativa, jamais poderia ter escolhido outra. Não há espaço para o acaso: a escolha só poderia ser outra, se a ordem da realidade também fosse outra, o que é absurdo. Não podemos falar, então, em mundos possíveis ou em contingências: nós somente acreditamos no livre arbítrio porque ignoramos as causas que nos determinam a agir. Acreditamos na liberdade do desejo apenas porque, circunstancialmente, tomamos consciência de nossos apetites. A liberdade humana, porém, existe – em um grau finito –, mas não se opõe jamais ao determinismo e à necessidade.

***

Jean-Paul Sartre, por sua vez, segue um caminho nitidamente diferente. O existencialismo, filosofia a qual Sartre esteve à frente, combate todo e qualquer determinismo no que concerne à liberdade humana. O determinismo ganhou muita força com o racionalismo do século XVII: nele o homem já nascia com uma essência pré-estabelecida. Isso significa que o homem realizaria uma idéia anterior a sua própria existência no mundo, concretizando uma natureza concebida anteriormente por um intelecto divino. O ser humano teria, assim, uma essência a cumprir: estipulada não por ele, mas por um Ser maior.

A grande querela do existencialismo contra o determinismo no que diz respeito à liberdade humana é a afirmação de que “a existência precede a essência”; subvertendo, assim, a tradicional formulação de que “a essência precede a existência”. Para Sartre, não há um Deus que produza uma essência humana, ou melhor: “ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão [...]. Não que acreditemos que Deus exista; pensamos antes que o problema não está aí, no da sua existência[5]. O homem não se constitui como um objeto qualquer, apesar de estar determinado pelas mesmas leis da física que os demais corpos. Adentramos, aqui, segundo Sartre, em um novo terreno que não se manifesta no reino dos objetos: o da consciência.

A consciência é uma constante recusa de ser objeto. Isso significa que ela é recusa de ser essência, um constante preencher-se de conteúdo exterior a ela (conteúdo que corresponde aos objetos com essências dadas – objetos que Sartre chamará de seres em-si). A consciência não tem uma essência prévia, sendo somente consciência de algo que está fora dela mesma. Compreende-se, então, a afirmação sartreana de que “a existência precede a essência”: somente na existência é que há essa possibilidade de encontrar objetos que são o que são. Fora disso a consciência (o homem) nada é:

O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja depois desse impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. (SARTRE, 1973, p. 12).

Um ponto crucial é a supressão de Deus. Segundo o filósofo existencialista, não há parâmetros dados para estabelecer bem e mal, já que tudo é fruto da decifração humana. Sartre nos diz que não existe uma base segura na qual o homem possa se apoiar que não seja ele mesmo. O homem é um ser que se faz e que se refaz a cada momento e que vive a liberdade como uma espécie de “condenação” (uma condição): logo, não é nada mais do que escolheu ser.

Existência e liberdade andam juntas. A consciência existe diferentemente de um objeto (esse, como já dito, não tem escolha alguma em ser algo diferente do que é). A consciência, porém, constitui-se como um projeto que se lança para além de si mesma, negando a determinação proposta pelo racionalismo absoluto. Sartre busca nos mostrar o homem livre de seus determinismos, exaltando a idéia de situação: somos e estamos, por exemplo, “jogados” numa época e situação social, mas sempre podemos escolher – sendo que o valor que atribuímos à situação depende unicamente de nossa liberdade. Em qualquer possibilidade somos livres para a constituição de um projeto.

A filosofia determinista postulou um somatório de causas que convergiriam em um indivíduo, porém não o colocou como o autor mesmo de seus atos, acreditando, assim, na existência de uma natureza humana imutável:

Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. (SARTRE, 1973, p. 15)

A culpa para os fracassos humanos, porém, foi delegada à natureza humana ou aos outros, sendo que – no caso da religião – o homem poderia, ainda, ser recompensado por um deus. Dessa maneira nos colocamos na perspectiva da má-fé, onde nos eximimos de nossa liberdade (logo, de nossa existência), delegando-a ao outro – e onde também tentamos nos enxergar como coisas determinadas e fechadas em-si. Isso, para Sartre, é absurdo, pois a consciência constitui-se como um para-si, ou seja, algo que só é consciência ao ser consciência de algo, uma ultrapassagem do estatuto de ser coisa.

A liberdade, para Sartre, ganha uma conotação um tanto radical e diferente da abordagem determinista, na qual – por exemplo, na filosofia de Espinosa – ser livre corresponderia a exercer uma natureza própria (isto é, uma essência) de forma determinada e causal, contra as coações advindas do exterior. No caso da abordagem determinista, ser livre significaria desviar-se o máximo possível de uma vida marcada pelo signo da passividade, onde buscaríamos ser o “agente de nossas próprias ações”. Na filosofia sartreana, a liberdade tem que ser absoluta ou nada pode ser. Não existe meio termo: “o homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente e sempre livre, ou não o é” [6]. Mesmo no caso do padecimento, optamos por padecer. Somos livres ou não somos livres.

Sabemos – e essa é uma ideia capital no existencialismo – que existência e liberdade andam juntas no que se diz respeito ao homem:

Desse modo, a liberdade é para Sartre a condição indispensável e fundamental da ação. De fato, toda ação implica para a consciência a possibilidade permanente de operar uma ruptura com seu próprio passado. Contrariamente às abordagens da Sociologia e Psicologia empíricas, a ação não é provocada por uma causa necessária anterior. Toda ação é afirmação de um sentido, é intencional. A intencionalidade implica necessariamente o tema da temporalidade: visando um fim, a consciência que age visa um inexistente, um irreal (futuro) que ela deseja instaurar. Portanto, o que esclarece uma ação não é o retorno a um motivo anterior, passado, dado, acabado, mas sim a antecipação de uma realidade futura. (PFEIL, 2008, pp. 153-54).

O existencialismo leva o homem ao centro de suas próprias ações, conscientizando-o da criação de suas próprias vontades e valores. Não há homem covarde, mas sim atos covardes, dirá Sartre. Entretanto, o que quiseram – segundo o filósofo – foi que se nascesse covarde e que se morresse covarde; que se nascesse heroi e que se morresse heroi. Para Sartre, nós nos construímos herois ou covardes, sendo que essa invenção é de nossa total responsabilidade. Sem uma natureza humana pré-estabelecida e “como uma folha em branco que se preencherá somente ao existir” foi dada ao homem chance de se assumir como responsável por tudo aquilo que fez. E isso inclui todo o seu universo, que é unicamente decifrado por ele.

***

Colocar a essência humana em questão nos leva a um caminho de intermináveis problemáticas concernentes à liberdade do homem. Não podemos remeter o termo “natureza humana” a um aparato estritamente biológico, mas ao que nos difere do reino mineral, vegetal e dos demais seres vivos – como fator primordial e instituidor da cisão homem/mundo – que é a consciência. O perigo, por exemplo, estaria em reduzir a consciência ao cérebro (ou o espírito à matéria), nos levando a uma atitude cientificista e, mais uma vez, a um imenso oceano de discussões, ainda vivo na filosofia e ciência contemporâneas.

Tal temática é tão ampla que permeia com grande força, por exemplo, a discussão em torno de conceitos como o de cultura. De forma ilustrativa, Edward Tylor – o primeiro a formular o conceito de cultura sob o ponto de vista antropológico [7] – procurou demonstrar que a cultura pode ser objeto de um estudo científico e sistemático, pois nela enxerga inúmeras regularidades – ou seja, causas – que permitiriam a formulação de leis. Para isso, considera a cultura como um fenômeno natural, apoiando-se nas ciências naturais:

Nossos investigadores modernos nas ciências de natureza inorgânica tendem a reconhecer, dentro e fora de seu campo especial de trabalho, a unidade da natureza, a permanência de suas leis, a definida sequência de causa e efeito através da qual depende cada fato. Apoiam firmemente a doutrina pitagoriana da ordem no cosmo universal. Afirmam, como Aristóteles, que a natureza não é constituída de episódios incoerentes, como uma má tragédia. Concordam com Leibniz no que ele chamou “meu axioma, que a natureza nunca age por saltos”, tanto como em seu “grande princípio, comumente pouco utilizado, de que nada acontece sem suficiente razão”. Nem mesmo no estudo das estruturas e hábitos das plantas e animais, ou na investigação das funções básicas do homem, são ideias desconhecidas. Mas quando falamos dos altos processos do sentimento e da ação humana, do pensamento e linguagem, conhecimento e arte, uma mudança aparece nos tons predominantes da opinião. O mundo como um todo está fracamente preparado para aceitar o estudo geral da vida humana como um ramo da ciência natural. ...Para muitas mentes educadas parece alguma coisa presunçosa e repulsiva o ponto de vista de que a história da humanidade é parte e parcela da história da natureza, que nossos pensamentos, desejos e ações estão de acordo com leis equivalentes àquelas que governam os ventos e as ondas, a combinação dos ácidos e das bases e o crescimento das plantas e animais. (TYLOR, 1871 apud LARAIA, 2009, pp. 30-31).

Com todas as suas faltas, essa pequena contraposição entre Espinosa e Sartre – no que concerne à liberdade e ao determinismo –, não pretende dar respostas finais ao tema. Por isso, a discussão está em aberto. Entretanto, pode valer como um propulsor para a formulação de novas questões, nos mostrando que muitas discussões aparentemente “velhas” – pois muito antigas e presentes na história da filosofia – apresentam-se, ainda, como atuais nos diversos campos de saber da contemporaneidade. São, portanto, dignas de uma revisitação.


Bibliografia:

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 24.ed. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982.

PFEIL, L. C. A moral em Sartre: uma porta para o impossível? In: Sartre e seus contemporâneos. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2008.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).

_________________. O ser e o nada. 17 ed. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


[1] Ética, I, p., 32.

[2] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 17 (Coleção Os Pensadores).

[3] Ou “ontologia fenomenológica” assim como enunciado em “O Ser e o Nada”.

[4] Sobre a “perseverança no ser”, diz Espinosa: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser” (ÉTICA, III, p., 6) e “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” (Ibid., p., 7). Tais proposições enunciam a tese do conatus (esforço, perseverança) que está intimamente ligada à questão da vontade na filosofia de Espinosa.

[5] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 28 (Coleção Os Pensadores).

[6] Idem. O ser e o nada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 545.

[7] Cf. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Moore e a Prova do Mundo Exterior


MOORE E A PROVA DO MUNDO EXTERIOR

George Edward Moore termina sua “prova do mundo exterior” alegando a falta de uma “boa razão” para uma possível insatisfação de seus críticos – sobretudo os idealistas do contexto filosófico britânico – diante das duas provas do mundo exterior fornecidas nesse pequeno, mas denso, escrito.

As críticas de Moore são endereçadas a Immanuel Kant no que diz respeito a sua prova do mundo exterior apresentada na Crítica da Razão Pura – na qual esse último, mediante o escândalo filosófico de que nunca se provou a existência do mundo exterior, teria elaborado uma prova efetiva para a resolução de tal problema.

Ao criticar Kant, Moore irá fazer uma “correção” das concepções idealistas, uma vez que empreenderá uma análise de proposições de forma minuciosa para evidenciar certas afirmações mal fundadas ou muito gerais. Uma investigação acerca do conjunto de proposições que formam a filosofia será, na história da mesma, o elemento propulsor de sua tradição analítica, pois coloca, assim, a análise como método essencial. [1]

Moore vai de encontro à pretensão kantiana de provar a existência “das coisas exteriores a nós”, ou seja, de um mundo que seria exterior ao sujeito do conhecimento. A questão aqui é a de saber se tal prova é rigorosa a tal ponto de colocar um fim em nossas dúvidas acerca da exterioridade: Moore defenderá que, além de a prova kantiana não ser a única, nós podemos dar muitas outras provas do mundo exterior. Para tanto, analisará um elemento o qual Kant se apropria em sua prova, a saber, a expressão “coisas exteriores a nós”. Alegará Moore que tal expressão não é perfeitamente clara.

Para esboçar uma primeira gama de problemas, Moore afirma que a ambiguidade envolvendo a expressão “coisas exteriores a nós” poderia ser pormenorizada ao usarmos “coisas exteriores” – porém, essa última foi utilizada, por muitos filósofos, como sendo um sinônimo para “coisas externas a nossas mentes”, e também como sinônimo da primeira. Isso acarretaria grandes questões, os quais o próprio Kant não teria conseguido responder.

Há uma passagem (Kritik der Reinen Vernunft, A 373) na qual o próprio Kant diz que a expressão “exterior a nós” “traz consigo uma ambiguidade inevitável”. Ele diz que “algumas vezes ela significa alguma coisa que existe como uma coisa em si distinta de nós, e algumas vezes que pertence simplesmente à aparência exterior”; ele chama as coisas que são “exteriores a nós” no primeiro destes dois sentidos de “objetos que se poderiam chamar exteriores no sentido transcendental”, e coisas que são no segundo sentido de “objetos empiricamente exteriores”; e ele diz finalmente que, para remover toda a incerteza com relação à última concepção, distinguirá empiricamente os objetos exteriores dos objetos que se poderiam chamar “exteriores” no sentido transcendental “chamando-os sem exceção coisas que se devem encontrar no espaço”. (MOORE, 1980, p. 279)

Apropriando-se da expressão “coisas que se devem encontrar no espaço”, Moore faz uma pequena lista de coisas, tais como o seu corpo, os outros corpos – animados e inanimados – e outros objetos dos quais ele pode se servir para alguma utilidade, a realidade física ou material, enfatizando que os elementos que aí se encontram representam “coisas que se devem encontrar no espaço”. [2]

Prosseguindo na análise da expressão, Moore logo buscará as exceções dessa lista – a sombra já seria um primeiro –, pelo fato de não existir uma identificação entre as expressões “coisas que se devem encontrar no espaço” e “coisas que se apresentam no espaço”: o filósofo encontra-se, portanto, ainda na delineação dos problemas gerados pelo estatuto ambíguo de ambas as expressões. Moore nos dá exemplos de coisas que se apresentam no espaço, mas que não podemos afirmar que se segue que devam ser encontradas no espaço. A saber: a imagem-posterior negativa (ou sensação-posterior negativa), a imagem duplicada e a dor corporal. Outro exemplo, só que mais delicado, é o da imagem-posterior que enxergamos com olhos fechados.

Moore, com base em um dos exemplos citados acima, nos atenta ao fato de que uma imagem duplicada que se apresenta no espaço, não é, necessariamente, “encontrável” no mesmo: isso significa que ela não é, necessariamente, objeto da percepção de outros. Assim, uma pessoa pode muito bem ver uma imagem duplicada sem que outra tenha percepção do mesmo fato citado. Quanto às imagens-posteriores negativas (aquelas que vemos num contraste claro-escuro/figura-fundo), nos diz Moore:

As imagens-posteriores negativas do tipo descrito são, portanto, um exemplo de “coisas” que, embora se deva admitir que são “apresentadas no espaço”, não se deve entretanto “encontrá-las no espaço”, e não são “exteriores a nossas mentes” no sentido com o qual estamos preocupados. (MOORE, 1980, p. 281)

O mesmo, seguindo esse raciocínio, se diria a respeito das dores: apresentam-se no espaço (sinto-as no meu dedo quando o corto), mas não posso dizer que devam ser encontradas nele, uma vez que ninguém pode experimentá-la de forma numericamente semelhante. Com os olhos fechados, porém, vejo uma série de imagens; mas qual o espaço no qual se apresentam? Esses exemplos utilizados por Moore são ilustrações para a afirmação de que “se apresentar no espaço não significa ser encontrada no espaço”, ou seja, pelo simples fato de “algo ser percebido por nós não se segue que esse algo tenha uma realidade física”. Então, num primeiro aspecto teremos: “se apresentar no espaço” > “ser encontrada no espaço”.

Entretanto, invertendo a proposição, podemos chegar a um segundo aspecto, “pois há muitas ‘coisas’ encontráveis no espaço, das quais não é verdade que se apresentem no espaço” [3], a saber: “ser encontrada no espaço” > “se apresentar no espaço”. Isso significa que, as coisas existem na realidade física sem que se apresentem no espaço, ou seja, sem que eu as perceba. Constituem-se, para mim, como um objeto da experiência possível:

Não existe, portanto, nada de absurdo na suposição de que muitas coisas, que deveriam em um momento ser encontradas no espaço, nunca fossem “apresentadas” em qualquer momento, e que muitas coisas que se devem encontrar agora no espaço, não são agora “apresentadas”, também nunca foram e nunca serão. (MOORE, 1980, p. 283)

Moore, assim, volta à análise da expressão “coisas exteriores a nós” e reforça, fazendo as analogias que construímos até aqui, que as expressões usadas de formas similares, tais como “encontradas no espaço” e “exteriores a nossas mentes” tampouco esclarecem o ponto em questão, pois sempre encontraríamos uma exceção à regra, um exemplo que dividiria o nosso olhar.

Colocado alguns problemas da linguagem kantiana – e da filosofia de um modo geral –, Moore começa a nos direcionar para a sua prova, aquela que ele diz ser uma dentre muitas possíveis. O filósofo volta, então, àquela lista inicial de coisas “que se devem encontrar no espaço”, ou seja, aos objetos físicos ou materiais. Sem enumerar novamente ou tentar expor mais exemplos, apenas seguiremos o traço delineado por Moore: “Se existem coisas desse tipo (os objetos físicos ou materiais), segue-se que há coisas que devem ser encontradas no espaço”. A essa afirmação, apesar de óbvia, Moore dará extrema importância destacando, aqui, a não-exigência de uma prova separada que asseguraria o vínculo entre os elementos da primeira proposição e de seu consequente, pois tal empreendimento não explicitaria a questão enquanto prova da existência do mundo exterior:

É suficiente para meu propósito que isto fique bem claro, porque, se isto estiver claro, então também estará claro que, como sugeri anteriormente, se provarmos que duas plantas existem, ou que uma planta e um cão existem, ou que um cão e uma sombra existem, etc., etc., teremos provado ipso facto que há coisas que se devem encontrar no espaço: não exigiremos também que se dê uma prova separada de que da proposição de que há plantas segue-se que há coisas que se devem encontrar no espaço. (MOORE, 1980, p. 285)

Mais adiante, Moore se preocupará em “fundamentar” que “se existem coisas desse tipo (como acima), segue-se que há coisas exteriores a nossas mentes”, calcando-se na ideia de que é por uma espécie de independência lógica que algo possui uma exterioridade em relação a nós. Remete a algo que, sendo independente da percepção de um indivíduo e dos demais, também é exterior às mentes dos mesmos. Numa espécie de ironia com Kant, para Moore não precisamos ir muito longe para chegar à conclusão de que, então, basta afirmar que existe um par de coisas para que pelo menos existam duas coisas fora de nós. Uma mão, por exemplo: poderia Moore afirmar a existência de uma mão, ou de duas, para afirmar a existência do mundo exterior?

“Aqui está uma mão”. “E aqui está outra”. Ele, assim, nos dá uma prova rigorosa do mundo exterior, pois se baseia em premissas que sabemos que são o caso. Assim,

Moore estabelece, primeiramente, o que considera ser uma prova rigorosa. Para que uma prova realmente o seja, três condições devem, para ele, ser satisfeitas: (1) a premissa deve ser diferente da conclusão (para evitar uma petição de princípio); (2) a premissa deve ser algo que se sabe ser o caso e que não tenha um estatuto de crença; e (3) a conclusão deve seguir-se logicamente da premissa. Propõe-se, então, a provar a existência de suas mãos. [4]

O mesmo raciocínio será adotado na “segunda prova”, que é aquela acerca da existência dos objetos (as mãos) no passado, ponto que, se não exposto, poderia ser uma brecha para uma refutação idealista ou cética. A guinada que Moore representa, nesse sentido, é a adoção de “provas absolutamente conclusivas” com relação ao discurso filosófico – provas estas que não se distanciariam da vida cotidiana, no sentido de que fazemos um uso bastante frequente delas.

Kant, assim, não representa a palavra final. Moore delimita bem o horizonte de sua prova: para que ela seja válida é preciso que se aceite as premissas, sendo que a conclusão se segue das mesmas. As premissas, no caso, só não seriam aceitas por um cético ou um idealista, pois o primeiro de tudo duvidaria e o segundo buscaria um regresso ao infinito, fugindo do propósito ao qual se submete a prova, o que se traduz numa interminável busca da “prova da prova”, sendo que o ápice seria uma formulação de algum enunciado geral que fosse a “regra da prova”. O que Moore defende, portanto, é que provar “as coisas exteriores a nós” é muito mais fácil do que poderíamos supor.

BIBLIOGRAFIA:

MOORE, G. E. Prova de um mundo exterior (Escritos filosóficos. Cap. VII). Tradução de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores)

ORMIERES, G. J. Três ensaios de G. E. Moore. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2004.

PÁGINAS DA INTERNET:

COELHO, M. P.

http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2009/relatorio/ctch/fil/maria.pdf

Acesso em: 07/12/10.


[1] Cf. ORMIERES, G. J. Três ensaios de G. E. Moore. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2004. pp. 43-44.

[2] Cf. MOORE, G. E. Prova de um mundo exterior (Escritos filosóficos. Cap. VII). Tradução de Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores) p. 279.

[3] Idem. Ibidem. p.283.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A CONCEPÇÃO DE DEUS E A LIBERDADE DA SUBSTÂNCIA NA FILOSOFIA DE ESPINOSA


A CONCEPÇÃO DE DEUS E A LIBERDADE DA SUBSTÂNCIA NA FILOSOFIA DE ESPINOSA

Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.[1]

– Espinosa

A definição de Deus na Ética de Espinosa é de importância fundamental para a construção de seu sistema filosófico, uma vez nessa obra o filósofo adota a ordem sintética de exposição – partindo de uma causa absoluta em direção a seus efeitos. Essa definição de Deus (Deus-substância) – da qual se seguem as noções de atributo e modo – desemboca em proposições que subvertem o Deus antropomórfico da tradição judaico-cristã. Tais consequências custaram a Espinosa uma forte rejeição de sua comunidade, culminando em um anátema (pronunciado contra Espinosa em 27 de julho de 1656) que o amaldiçoou e o excomungou da nação de Israel. Não nos detendo, porém, em seus aspectos históricos, pretendemos percorrer a linha de raciocínio que constitui a base – o ponto de partida – da obra magna de um dos grandes racionalistas do século XVII, utilizando-nos da liberdade como paradigma que nos conduzirá ao objetivo de nosso trabalho, que é o de buscar a ideia de Deus na filosofia de Baruch Espinosa.

É importante ressaltar que Espinosa desenvolve sua Ética demonstrada à maneira dos geômetras pautando-se nos princípios de exposição da geometria euclidiana: parte, assim, de definições, axiomas e formula proposições sucedidas de demonstrações. Para o filósofo – defensor da inteligibilidade integral do real –, esse é o caminho que nos permite conhecer verdadeiramente a realidade: o método dedutivo, que busca as propriedades intrínsecas à ideia verdadeira, nos dando a coerência interna do pensamento e, também, apresentando-se como o viés pelo qual o real é conhecido por suas causas. Tal procedimento de busca da verdade, por sua vez, baseia-se numa inversão do tradicional princípio de causalidade: se, até então, “para todo efeito temos, necessariamente, uma causa”, para Espinosa “toda causa produz, necessariamente, um efeito”. Tal inversão, apesar de sutil, é de grande importância para a ordem sintética de exposição [2], já que Espinosa parte da causa sui: “por causa de si compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente”. [3]

A única causa sui que Espinosa admitirá, veremos, será Deus – sendo que Ele (Deus-substância) e Natureza (num sentido de totalidade) se confundem – constituindo, assim, fundamento de si mesmo e causa de toda a realidade possível. A esse respeito, podemos anunciar que – para uma apreensão da ideia adequada de Deus – temos que ultrapassar sua visão antropomórfica (concepção essa imaginária): é preciso, pois, “demonstrar que Deus não é um intelecto nem uma vontade, que não age por finalidade e que Nele liberdade e necessidade são uma só e mesma coisa” [4], bem como demonstrar que Ele mantém uma relação de imanência – e não de transcendência – com a realidade. Definiremos, assim, a liberdade da substância divina como decorrência necessária de sua natureza e não como um livre arbítrio. Assim, explicitar as definições de substância, atributo e modo – articulando-as com os axiomas apresentados por Espinosa –, mostra-se como movimento necessário para a compreensão da ideia adequada de Deus.

Dirá Espinosa: “por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado” [5]. Para nos situarmos melhor, conviria citarmos, também, os dois primeiros axiomas da primeira parte da Ética, a saber: “tudo o que existe, existe ou em si mesmo ou em outra coisa” [6] e “aquilo que não pode ser concebido por meio de outra coisa deve ser concebido por si mesmo” [7]. Espinosa, aqui, faz uma distinção capital no que diz respeito à compreensão da ideia de substância: há, em meio à totalidade de entes, uma única substância que pode ser concebida em si e por si mesma, e que não depende do conceito de nenhuma outra coisa para ser concebida. Por outro lado, há entes que, para serem concebidos, são remetidos a coisas que possuem um maior grau de realidade. Desse modo, o axioma 2 corrobora a definição 3 – porém, não como um suporte para a fundamentação da última uma vez que a existência de uma única substância já é – por si só – objeto de demonstração.

Ainda na delineação desse cenário inicial, o axioma 1 – por sua vez – articula-se fortemente com a definição de causa sui, nos dando base para afirmar, até agora, que existem dois graus de realidade: uma substância que é definida por si mesma (sendo causa de si e da realidade) e um conjunto de coisas que dependem de outras para serem definidas – pela necessidade de pressupostos que entram em suas definições e existências –, tendo a substância como causa primeira. Essa relação de dependência lógico-conceitual e existencial das coisas em relação à substância torna-a imanente às próprias coisas. Ou seja: a substância encontra-se nas coisas as quais subordina, não estabelecendo uma relação de transcendência, ou seja, não se destacando numa esfera superior ou separando-se delas.

Na definição 6, dirá Espinosa: “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita” [8]. Aqui, a identificação entre Deus e substância fica clara, bem como a ideia de que Ele – sendo absolutamente infinito – existe de forma ímpar, único enquanto substância, o que por si só contraria a filosofia de René Descartes, que admitia a existência de dois tipos de substâncias (res cogitans e res extensa). Para responder ao problema da pluralidade de coisas no mundo, podemos dizer que um contraponto de Espinosa com o cartesianismo será o de que a substância, sendo causa de tudo, se expressa de diversas formas – dentre elas, nos atributos da extensão e do pensamento.

A substância não produz outras substâncias – o que seria impossível ao seguir o rigor dedutivo –, mas sim modificações na realidade: efeitos que não se separam de sua causa e que se encontram na própria substância absolutamente infinita. A causalidade divina não institui binômios, mas sim n expressões de uma mesma realidade:

Há, assim, duas maneiras de ser e de existir: a da substância e seus atributos (existência em si e por si) e a dos efeitos da substância (existência em outro e por outro). A essa segunda maneira de existir, Espinosa dá o nome de modos da substância. Os modos ou modificações são efeitos necessários produzidos pela potência dos atributos divinos. (CHAUI, 1995, p. 47).

A essa distinção convém observar que,

À substância e seus atributos, enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá o nome de Natureza Naturante. À totalidade dos modos produzidos pelos atributos, dá o nome de Natureza Naturada. (CHAUI, 1995, p.47).

Natureza Naturante, portanto, corresponde à substância e seus atributos e Natureza Naturada aos modos – modificações – expressos pelos atributos da substância e, por conseguinte, pela própria substância. As definições de atributo e modo, anunciadas nas primeiras linhas da Ética – antes mesmo da definição de Deus –, se fazem necessárias para a apreensão dessa dimensão proposta por Espinosa à realidade substancial. Segundo Espinosa, “por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência” [9] e “por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual também é conhecido” [10].

Deus – portanto, a única substância possível – constitui-se como um Ser de realidade máxima (“quanto mais realidade ou ser uma coisa tem, tanto mais atributos lhe competem” [11]) e composto de infinitos atributos que expressam a Sua essência, porque imanentes à substância. Entretanto, os únicos atributos que competem ao conhecimento do homem são os atributos da extensão e do pensamento, uma vez que o homem é corpo e alma (um conjunto de corpos e ideias), ou seja, composto – através das leis da extensão e do pensamento – de dois modos contidos nos atributos e, consequentemente, contidos na substância:

Desse modo, os corpos definem-se pela figura e pelo movimento, que são modos da extensão; uma figura, um círculo, por exemplo, é uma determinação da extensão; mas a extensão não pode ser concebida a partir de uma coisa diferente dela, deve ser concebida por si. Da mesma forma, uma ideia é um modo, uma determinação do pensamento; mas o pensamento é um atributo, que é concebido por si.

Sendo concebido por si, o atributo distingue-se dos modos e assemelha-se à substância, que é em si e concebida por si; todavia, não se identifica com ela, pois não subsiste em si; atem-se a ela, só nela pode existir. (MOREAU, 1971, p. 33).

Tendo percorrido, em linhas gerais, a distinção feita por Espinosa no que concerne às noções de substância, atributo e modo – base de todo o sistema filosófico da Ética –, trataremos, pois, da questão da liberdade na substância absolutamente infinita, ou seja, de Deus (ou da Natureza). Tal formulação, como já dito, custou a Espinosa o repúdio de sua época.

Como devemos, portanto, entender a liberdade da substância? Espinosa negará, de maneira incontestável, a concepção tradicional de liberdade, que a considera como liberdade da vontade (refúgio da ignorância, segundo o filósofo). Vale lembrar que, para Espinosa, “a vontade não pode ser causa livre, mas unicamente necessária” [12], o que nos remete à afirmação de que o livre arbítrio, na verdade, nada mais é do que uma ilusão que nasce da ignorância das causas que nos determinam a agir. Isso em nível humano: o homem – que é um modo finito da substância e que segue um nexo de causas – tem sua ação sempre limitada por coisas de mesma natureza, ou seja, por outros corpos e ideias (ver mais adiante: Ética, I., def., 2):

Restaria saber se a substância agiria pela liberdade da vontade ou pela necessidade de sua própria natureza – oposição essa, dirá Espinosa, calcada em ideias imaginativas, nos fazendo adquirir um conhecimento inadequado da realidade. Visitemos, portanto, outras definições da primeira parte da Ética:

Diz-se finita em seu gênero aquela coisa que pode ser limitada por outra da mesma natureza. Por exemplo, diz-se que um corpo é finito porque sempre concebemos um outro maior. Da mesma maneira, um pensamento é limitado por outro pensamento. Mas um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo. (ÉTICA, I., def., 2.).

E mais adiante:

Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida, aquela que é determinada por outra a existir e a operar de maneira definida e determinada. (Ibid., def., 7.).

Partindo dessas definições, podemos concluir que defender a liberdade como liberdade da vontade significa nada mais que empreender algo ilusório, tanto no homem, quando em Deus. O homem, por contraponto ao tema de nosso trabalho, é finito, constituído por modificações do atributo extensão e do atributo pensamento e, por isso, limitado por outras coisas de mesma natureza, a saber, outros corpos e ideias. Quanto menos estiver coagido por outras coisas de mesma natureza, mais poderá exercer ativamente, de forma determinada, sua natureza, sua essência – ou seja, seguindo um nexo de causas que têm a substância como princípio. Esse é o exercício da liberdade nos modos finitos, em linhas gerais: uma autodeterminação; onde liberdade e necessidade não se opõem. No que designa a Deus, a liberdade não deixará, também, de estar atrelada à necessidade – porém, não havendo espaço para coação alguma.

Sendo única – e não-limitada por outra coisa de mesma natureza –, a substância “existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e por si só é determinada a agir”, sendo constituída por uma liberdade necessária e absoluta. Não havendo nada de mesma natureza que ela, uma vez que é absolutamente infinita, uma coação advinda do exterior é impossível. Se afirmássemos o contrário, admitiríamos a existência de duas ou mais substâncias: cairíamos, por isso, em contradição. Observa Chaui:

Deus é causa livre, necessária e imanente de todas as coisas. Livre: porque age apenas segundo a necessidade interna de sua essência. Necessária: porque sua potência é idêntica à sua essência. Imanente: porque não se separa de seus efeitos, mas neles se exprime e eles O exprimem. (CHAUI, 1995, p. 50).

Deus, assim, é livre de acordo com Sua própria essência, jamais produzindo algo que se contraponha a Sua natureza. Todo o possível, foi, é e será produzido pelas determinações da Natureza. O grande erro da tradição judaico-cristã foi considerar Deus somente como um Ser de pensamento (desvalorizando, assim, a extensão), compreendendo a liberdade divina como anterior as próprias leis da realidade. Assim, Deus foi encarado como um espírito soberano, tal como um monarca, que instituiria leis segundo Sua vontade.

Ainda segundo a tradição, Deus (esse Ser sumamente bom) também criaria milagres, atendendo aos pedidos e súplicas dos homens – preconceito esse que, além de ilusório, mascarou (e que ainda mascara) grandes ideais de dominação, uma vez que a poucos é concedido o direito à comunicabilidade com esse Deus pessoal e soberano. Junto ao livre arbítrio, podemos encontrar um outro preconceito humano: o do finalismo (finalismo intencional ou providência divina). Ele será excluído do sistema espinosano – não excluindo, porém, a ideia de uma organização necessária da natureza [13]:

Deus não age por vontade e entendimento, nem orientado por fins, pois vontade e entendimento não são atributos de sua essência, mas modos finitos de um de seus atributos (o Pensamento), e a finalidade é uma projeção imaginária da ação humana em Deus, projeção que, aliás, não corresponde sequer à própria causa das ações humanas, pois os homens também não agem movidos por fins. Deus é uma causa eficiente que age segundo a necessidade interna e espontânea de sua essência, jamais uma causa final e jamais movido por causas finais, pois isso levaria a supor a existência de algo fora Dele que o incitaria a agir, mas nada existe fora de Deus (pois há uma única substância infinita) e nada pode incitá-lo ou coagi-lo a agir, uma vez que Sua ação não é senão a manifestação necessária de Sua essência. (CHAUI, 1995, p. 50).

Espinosa termina a primeira parte da Ética tendo definido a natureza divina e demonstrado suas propriedades, geometricamente. Porém, seus esforços também se concentraram em enumerar uma série de preconceitos que minam as visões humanas, uma vez que elas se baseiam em ideias imaginativas e mal fundadas. Para Espinosa, o conhecimento adequado de Deus é um passo capital para a compreensão dos pontos que se seguirão na Ética, como a natureza da mente humana e dos afetos. Tal tentativa, portanto, apresenta-se como uma possibilidade de superação de nossos preconceitos primeiros e empreende o conhecimento adequado de um universo totalmente determinado e inteligível, que é o nosso.

BIBLIOGRAFIA:

CHAUI, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos).

MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


[1] Ética, I, def., 6.

[2] Ordem de exposição que parte da causa em direção a seus efeitos. A ordem de exposição cartesiana (analítica) parte dos efeitos em direção à causa.

[3] Ética, I, def., 1.

[4] CHAUI, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. p. 46

[5] Ética, I, def., 3.

[6] Ibid., ax., 1.

[7] Ibid., ax., 2.

[8] Ibid., def., 6.

[9] Ibid., def., 4.

[10] Ibid., def., 5.

[11] Ibid., p., 9.

[12] Ibid., p., 32.

[13] MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 38.