sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Meninos de rua?




MENINOS DE RUA?

Eixos de comparação entre os seguintes artigos:

VIANNA, Adriana. Internação e domesticidade: caminhos para a gestão da infância na primeira república. In: GONDRA, J. (org.). História, infância e escolarização. RJ: 7 Letras, 2002.

ALVIM, Rosilene. Meninos de rua e criminalidade: usos e abusos de uma categoria. In: ALVIM, R. Candelária 93: um caso limite de violência social. NEPI/LPS/IFCS/UFRJ, 1993.

A temática tratada por ambos os artigos, dentre seus muitos aspectos, pode se concentrar na tríade infância-trabalho-criminalidade. Os textos trabalhados evidenciam o limiar no qual, crianças e jovens, se encontram quando estão nas ruas (por escolha ou não): entre o trabalho – árduo, informal, encarado a princípio como algo que dignifica, que engrandece, que o torna adulto e independente – e o crime – que será a grande “oferta” para esses meninos, sendo encarado, em muitos casos, também como trabalho.

Casa e rua. Onde se encontram os domínios da criminalidade e seus desdobramentos na vida da criança são questões centrais, pois, uma vez que mediante a convivência familiar no lar (que poderá ser pacífica ou violenta, além de satisfatória ou precária), teremos o elemento capital para a decisão do abandono familiar por parte da mesma. Porém,

[...] Existe algo mais que está além das quatro paredes de suas casas, o que os cerca é um quadro social de exclusão no qual não veem possibilidades de futuro. Viver nas ruas é também uma recusa em aceitar passivamente a perspectiva que circunda suas vidas na família e no bairro. Com isto não estou afirmando que a rua possa oferecer um futuro ou apresentar nova perspectiva de inserção social [...]. No entanto, vir para as ruas depois de um processo vivido por etapas, significa, na maior parte dos casos, uma esperança.

(ALVIM, 1993, pp. 22-23)

Juntamente com a concepção de que a família é um refúgio, temos a ideia de trabalho como algo enobrecedor. Tais concepções resultam no desenvolvimento de determinadas políticas que visam à inclusão de jovens abandonados ou, segundo a explorada terminologia, os ditos “meninos de rua” que, por sua vez, são vistos como perigos em potencial por estarem expostos à criminalidade. Ou seja, muito mais de estarem em perigo: os jovens podem, também, ser perigosos.

Essas “soluções” postulam que o trabalho será um caminho para a normalização do jovem na sociedade, mas seus problemas são inúmeros: em primeiro lugar, como a maioria das políticas que atingem especificamente algum núcleo da sociedade, não há um englobamento de todos que necessitariam de tal serviço; não há uma fiscalização efetiva; a burocracia que envolve a tomada de decisões é desestimuladora; as instituições responsáveis por tal empreendimento permitem a coexistência de agentes que abusam de sua autoridade; e contamos também com a rebeldia de muitos jovens que resistem a tais medidas.

As medidas as quais nos referimos constituem o que chamamos, de acordo com a política da Primeira República, de um programa de “gestão de infâncias consideradas ‘incorretas’”. Menores eram recolhidos e enviados ao Juizado nesse corpo de medidas que se fez notar entre os anos de 1910 e final da década de vinte. Os menores tinham, a princípio, dois destinos justapostos ilustrados pelas instituições a seguir:

A Escola Premonitória Quinze de Novembro e a Colônia Correcional de Dois Rios. Enquanto a primeira propunha-se a ser um centro modelar na transformação dos menores recolhidos em “cidadãos úteis a si e aos outros”, nos dizeres de seu diretor, Franco Vaz, a segunda obedecia basicamente ao perfil de uma instituição de detenção e internação de criminosos. No caso dos menores para lá enviados, porém, não havia qualquer condenação formalmente estabelecida, sendo para eles reservada uma rubrica (a de menores) distinta da indicada para os criminosos adultos, que seguiam classificados como reservados ou sentenciados.

(VIANNA, 2002, p. 30)

Entretanto, havia uma terceira possibilidade: o alocamento de jovens em casas de terceiros. Aí o jovem desempenharia funções cotidianas e, notadamente no caso específico de meninas, trabalharia na casa de seus tutores. Notamos também o forte laço entre trabalho-casa, pois o intuito dessa medida, através do trabalho, da proteção e supervisão de uma família, era o de libertar o jovem de sua quase “determinação”, segundo seus idealizadores. O cenário, porém, não era um dos melhores: os ditos “vadios” (entre outros termos, que evidenciam o problema da terminologia) não se adaptavam sempre à família, que nem sempre os tratavam bem. Em consequência, fugiam de casa. A rua, então, seria um novo abrigo caso conseguissem, mais do que da família, fugir do sistema.

Mas poderia a rua dar esse suporte que antes era dado por sua família (ou pseudofamília)? Aqueles que mal foram contemplados por programa algum saberiam, mesmo que não por completo, nos dar uma resposta. Tachados, espacialmente, como um único grupo, os “meninos de rua” são enxergados com um afiado determinismo, que advém de todos os aspectos negativos que atribuímos ao meio em que vivem. Reside aí o problema da generalização, pois ignoramos os fatos que poderiam tê-lo levado a “ser de rua”, sendo o abandono apenas um deles. Assim, a rua poderia, abrindo o leque de possibilidades, ser apenas um local de trabalho (e assim designá-lo como um “menino na rua” e não “da rua”). Entretanto, uma vez a rua sendo também moradia, teremos um verdadeiro entrelaçamento entre público e privado. Uma confusão de limites estará sendo estabelecida.

Muitas crianças e jovens marginalizados, e coisificados pela sociedade, procuram o trabalho, mas logo ascendem à esfera criminal. Não por desejarem, mas como escolha na qual um fim qualquer será mais facilmente atingido: o crime passa, assim, a ser uma espécie de trabalho ou, propriamente, “o” trabalho. Enxergamos explicitamente essa questão no suposto depoimento de Marcelo Cândido de Jesus (“o Careca” - 14 anos), uma das oito vítimas do massacre da Candelária, que teria dito ainda em vida: “o que mais me aborrecia era não ter roupas para ir às festas. Vou ficar rico, nem que para isto eu tenha que dar um grande golpe. Vou ganhar dinheiro e ficar rico, para dar presentes à minha mãe[1]. Outra vítima, Anderson de Oliveira Pereira (“o Caolho” – 13 anos) provavelmente teria dito, segundo depoimentos, ao se revoltar contra PMs que o exploravam: “Então para que trabalhar? Agora, se eles acharem que o dinheiro é roubado, vão estar com a razão. Eu sei que nunca vou sair da rua[2]. Tais depoimentos nos evidenciam sonhos, mas tristes perspectivas.

Segundo Alvim “a rua tem para os meninos esse lado de aventura marcada pelo perigo” [3], o que nos faz, antes de buscar culpados, refletir sobre o real papel do Estado e da sociedade. Afinal, com muito trabalho, podemos sim reverter essa situação encarada como determinista, mas, como enfatizo, a mobilização tem que ser geral: educação, saúde, trabalho, dentre outras, devem atuar conjuntamente para buscar a solução para formar uma solução maior para esse grande problema. Caso contrário, estaremos caminhando para um novo massacre – não necessariamente o da Candelária – mas aquele que vemos todos os dias nos noticiários, nos jornais e que é lento, mas evidente: o massacre da população carente, brasileira.


[1] ALVIM, Rosilene. Meninos de rua e criminalidade: usos e abusos de uma categoria. In: ALVIM, R. Candelária 93: um caso limite de violência social. NEPI/LPS/IFCS/UFRJ, 1993. p.17

[2] Ibid. p. 21.

[3] Ibid. p. 23

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